terça-feira, 8 de dezembro de 2009

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O Medo e Delírio de Hunter Thompson

  HunterThompson_Gonzo

A imprensa é uma gangue de covardes impiedosos. Jornalismo não é profissão, não é nem mesmo um ofício. É uma saída barata para vagabundos e desajustados - uma porta falsa que leva à parte dos fundos da vida, um buraquinho imundo e cheio de mijo, fechado com tábuas pelo inspetor de segurança, mas fundo o bastante para comportar um bêbado deitado que fica olhando para a calçada se masturbando como um chimpanzé numa jaula de zoológico.

Hunter Thompson

Não aposte na maconha!

Em Nevada: Posse - 20 anos

Venda - Prisão perpétua

Placa de recepção do Estado de Nevada

Em uma sociedade onde todos são culpados, o único delito é ser pego.

Hunter Thompson

 

[Nota: Assim como Thompson em Medo e Delírio em Las Vegas, não fiz qualquer revisão no texto abaixo. Está tudo da forma como escrevi da primeira vez!]

Quando, em pleno ano de 1971, recebeu uma ligação dos editores da revista Sports Illustred para cobrir a clássica e gigantesca corrida no deserto Mint 400, Hunter não sabia que estava próximo de dar início a sua obra mais famosa, e “O” marco do Jornalismo Gonzo. Como de praxe, ao invés de simplesmente ficar observando motos e buggies correndo na areia loucamente sem direção - ele até tentou, é verdade - Hunter Thompson preferiu fazer uma descrição de um ambiente bizarro e efervescente que ele ainda desconhecia: Las Vegas, a Cidade do Pecado.

Minutos depois dessa ligação, ele se prepara. Se junta ao seu advogado samoano, aluga um um conversível vermelho apelidado de Tubarão Vermelho… e gasta o resto da grana disponibilizada pela revista na compra de drogas querendo chegar ao estado mental necessário para escrever sobre coisas estranhas do tipo. Após alguns percalços, Thompson - aqui com o nome de uma espécie de alter-ego chamado Raoul Duke - e seu advogado, Dr. Gonzo - um alter-ego do advogado Oscar Zeta Acosta - partem para a jornada mais louca da vida deles, símbolo de uma geração explosiva, que mostrou aos EUA o resultado de anos de coisas como Vietnã e presidentes de extrema direita. O resultado é uma jornada selvagem ao coração do Sonho Americano, chamada Medo e Delírio em Las Vegas.

A essência da obra mostra um dos dons de Thompson: sempre fugir do óbvio. Recém contratado da Rolling Stone, na época um símbolo quase mainstream da contracultura americana  - após trabalhar em veículos como o Scanlan’s Monthly e a revista esquerdista The Nation (que o contratou para escrever sobre os Hell’s Angels) - ele ficou famoso com o primeiro artigo devidamente rotulado de gonzo: O Kentucky Derby é Decadente e Depravado. Os pormenores das duas reportagens são praticamente os mesmos: ele é escalado para cobrir uma corrida tradicional e acaba por entregar uma experiência antropológica, observando os seres que orbitam ao redor do espetáculo, e constatando que a loucura que impera nesses lugares.

Como era de se esperar, sua cobertura do evento não é nada convencional. Antes de chegarem ao hotel em que ele ia se hospedar, a grana da dupla de malucos já tinha se esgotado, tudo por causa do carro e da compra das drogas. Então, daí pra frente eles são obrigados a darem golpes no hotel, fora que destroem o quarto por causa do efeito de um quadrado de LSD, e se vêem envolvidos com uma depravada sexual. E a tal corrida? Bem, ficou para extremo segundo plano, já que Thompson tentou assisti-la, mas só conseguiu ter seus olhos cobertos pela maldita areia do deserto, tendo o assunto não ocupado mais que algumas páginas em sua reportagem.

O estranho é que a persona dele não parece muito estranha num ambiente desses. É como um leão sair da savana, ir para o Pólo Sul e encontrar predadores muito mais sinistros, perfeitamente adaptados para dilacerar pedaços de carne felinos. Tal ambiente com certeza assustaria o leão - isso se não levarmos em conta a temperatura violentamente diferente que mataria o rei da selva. O mesmo ocorreu com Hunter. Acostumado com tipos estranhos de lugares um pouco menos exóticos, como Aspen, cidade a qual ele perdeu a eleição para o cargo de xerife por poucos votos; ele se viu cercado de animais ainda menos irracionais que eles. Em alguns momentos ele chega a relatar o fato de não ser necessárias drogas para se ficar devidamente louco na cidade, basta dar uma volta por aí. É exatamente por esse motivo que ele tem a plena certeza que o sonho americano tem que estar por ali.

 

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Mas como toda sucessão de loucuras, a jornada deles precisa de uma guinada 360º, e principalmente após cometerem crimes no hotel, e não terem qualquer dinheiro para pagarem a conta. E Hunter foge… isso logo depois do advogado dele desaparecer. Mas a sorte sorri para ele e Dr. Gonzo lhe manda um telegrama avisando que a Rolling Stone o estava chamando para cobrir uma conferência anti-drogas ali por perto. É o tipo de situação surreal que dificilmente se ouve falar: dois usuários insanos de drogas, com isso praticamente estampado na cara deles, se infiltrando em uma conferência cheia de policiais boçais que querem combater o alastramento de drogas no país. É tudo bizarro e divertido ao mesmo tempo, soando como dois mosquitos ousados passando pelo meio de um lago lotado de sapos cegos e famintos.

Na conferência é fácil descobrir porque existem tantos viciados nos EUA. É claro que é uma pequena mostra da complexidade do assunto, mas o pedaço exposto do problema  já justifica tamanha maluquice. O nível dos policiais ali presentes lembra mais uma conferências de nazistas querendo exterminar comunistas pensando em criar uma vacina para isso, ou matando-os de fome, escondendo as criancinhas deles. A boçalidade de certas autoridades realmente assusta, mesmo que seja de conhecimento popular que gente do governo  americano tem interesses comerciais na venda de drogas - principalmente as sintéticas e altamente viciantes, com cocaína, crack e heroína - utilizando a CIA para fazer tráfico, como foi exposto na Guerra do Vietnã, o caso Irã-Contras e na recente Guerra do Afeganistão.

Ao voltar para seus editores da Sports Illustred para a publicação do artigo… ele é chutado da redação, sob a alegação de que o artigo está sofrível, além de receber uma advertência. A Rolling Stone tem a ousadia de publica-lo integralmente, de forma seriada, o que seria um grande sucesso e marcaria o auge da carreira Thompson.

 

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O texto de Hunter é praticamente um personagem, como sempre. Suas descrições muito detalhadas dos ambientes e das situações estranhas, bem como das reações adversas da sua mente à algumas drogas novas que resolveu experimentar enquanto ia checar suas reservas no hotel, ou estava tranquilamente bebendo uns drinks no bar do hotel, são hilárias. O resultado são visões de morcegos, dinossauros e bruxas… às vezes com tudo isso ao mesmo tempo. Talvez pelo fato do seu nível de loucura ser altíssimo, o filme baseado em Medo e Delírio seja fraco, embora fiel. Se me perguntarem porque achei o filme ruim, direi simplesmente que existem certas obras que não devem ser adaptadas. E Medo e Delírio em Las Vegas é uma delas.

O problema é que o livro é de uma esquizofrenia única, e faze-la fiel dá um ar Monthy Python em excesso a tudo - e não falo isso somente pela direção de Terry Gilliam. A atuação de Depp é perfeita… porém ruim, já que Thompson é um personagem de excessos, e seus tiques são muitíssimo estranhos para ficarem bem num filme. Todo o resto é perfeitamente similar ao livro, mas realmente não funciona nas telas. É um mundo de papel, para ser imaginado, e mesmo que visualmente fiel, não agrada nas telas, servindo melhor como um chamariz para as verdadeiras obras-primas de Hunter Thompson sempre ambiciosas experiências jornalísticas, que poucos veículos têm a coragem de publicar.

Como pontos altos do filme, ficam as atuações - além de Depp, vemos Benicio Del Toro, Tobey Maguire, Christina Ricci e Cameron Diaz - e sua trilha sonora, com Bob Dylan, Frank Sinatra, Rolling Stones e Dead Kennedys. Os cenários ficaram por demais burlescos, lembrando em alguns momentos um cruzamento mal feito de Família Dinossauro e os filmes 3D de Robert Rodriguez. Mas assista pela trama louca, e pelas narrações em off afiadas, que relatam em minúcias as buscas pelo Sonho Americano feitas pela dupla de doidões. Mas, na dúvida escolha o livro!

Mas se Medo e Delírio não foi um clássico nos cinemas, apesar de ser reconhecidamente um filme cult, o documentário Gonzo: The Life and Work of Dr. Hunter S. Thompson se sai muito, muito melhor. O documentário é um apanhado da vida de Thompson em vídeo. Mas diferente das outras duas - em papel, descritas no post anterior -  aqui vemos tudo pelos olhos dos que presenciaram sua carreira, e não pelos olhos malucões dele. O documentário faz duas coisas muito bem: reúne um monte de gente importante que conheceu Thompson - tem até Jimmy Carter na jogada - e os coloca pra depor; e é também um resumo da trajetória política, social e cultural de uma América do Submundo, aquela que só é notícia quando explode e invade a elitista. É a América de Jack Kerouac, de Willian Burroughs, de Robert Crumb. E aqui em Gonzo, vemos as duas facetas desse país tão amado e odiado.

Johnny Depp volta ao mundo da contracultura de Thompson, narrando o documentário em momentos-chave da vida do jornalista. É justamente a entrada de Depp - ele e Thompson viraram amigos com as filmagens de Medo e Delírio - que possibilitou que o diretor Alex Gibney pudesse contar com gente importante dando depoimentos, como Jann Wenner (fundador e editor da Rolling Stone), Sonny Barger (todo-poderoso dos Hell’s Angels) e Ralph Steadman (ilustrador de diversas reportagens de Thompson), entre outros. 

O problema é que com o suicídio de Thompson, ninguém estava disposto a depor, principalmente no tocante a questão das drogas, sempre presentes na vida dele. Somente com Depp - que bancou um milionário funeral de Thompson, que incluiu até a jogada das cinzas dele para o espaço - a bordo é que foi possível reunir depoimentos emocionados e de gente importante que estavam a frente da América no período em que Hunter mudou a cara do jornalismo dos EUA.

 

HunterThompson

Outro momento crucial que ganha destaque no documentário é a cobertura da campanha presidencial de 1972. Hunter apoiou George McGovern desde o início - inclusive nas apertadas prévias do Partido Democrata -, que estava numa disputa contra o inimigo público número 1 dos EUA na época, um precursor de George Bush: Richard Nixon. A frustração de Thompson ao constatar a escolha equivocada de McGovern do seu vice, o que consequentemente foi um dos motivos para derrota dele, também ficam claros… e são refutados, já que o próprio candidato faz o seu depoimento.

Também vemos seu envolvimento com os Angels, momentos da sua candidatura a xerife e um dos seus julgamentos. Mas se tem uma coisa que diferencia esse documentário de tudo que você vai ler dele, é que aqui é narrada sua queda, o fim de sua carreira; que se iniciou quando ele ficou semanas na África para cobrir a luta Ali vs Foreman… e voltou sem texto, o que deixou Jann Wenner chateado. Após esse episódio, ele passou a se distanciar das grandes reportagens, se tornando cada vez mais recluso em sua propriedade em Aspen, limitando-se a escrever uma coluna sobre futebol americano para o site da ESPN.

Daí para frente sua jornada auto-destrutiva seria cada vez mais lenta… porém mais decisiva. Ele faria uma auto-biografia, e finalmente se suicidaria em 2005. Foi o fim de uma era do jornalismo americano. Hoje, em tempos ainda mais escrotos que os presenciados por Hunter, a maioria dos veículos de comunicação se limita a apoiar medidas anti-liberdade de governos (Lei Azeredo, alguém?), com poucos jornalistas buscando a verdade, que é um objetivo pouquíssimo alcançado na nossa geração.

Hunter faz falta…

 

PS: Para ler os outros artigos sobre Hunter Thompson, clique AQUI e AQUI.

 

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Livro: Fear and Loathing in Las Vegas (1971)

Autor: Hunter Thompson

Páginas (Ed nacional CONRAD): 214

Nota: 8,5

 

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Filme: Fear and Loathing in Las Vegas (1998)

Diretor: Terry Gilliam

Duração: 118 min

Nota: 6

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Gonzo: The Life and Work of Dr. Hunter S. Thompson (2008)

Diretor: Alex Gibney

Duração: 120 min

Nota: 9

7 Comentaram...

Murilo Andrade disse...

Que ele era um jornalista revolucionário disso ninguém tem dúvidas. Mas acho que houve sim um pouco de construção do mito aí.

Nelson Rodrigues disse...

uma palavra: POSER

Anônimo disse...

Sensacional a crítica...
Só descordo em relação ao filme: pegou pesado.
Eu achei maravilhoso o filme, claro que assisti sem nem saber quem era O cara e achei engraçado pra caramba... rachei o bico, e olha que eu não tinha tomado nem um décimo do que eles tomam... a atuação do Johnny Depp tá phodástica, boa mesmo... ele deve ter tomado muita droga pra interpretar os efeitos tão bem assim! hahaha

Abração
Gabriel Dread

Anônimo disse...

Guinada 360º volta ao ponto de partida.

Você é de humanas?

Hueber disse...

Cara, onde que eu acho esse documentário?

Davi disse...

"Guinada 360º volta ao ponto de partida."
AUHUHAUuuhuh

O post ta otimo mas é verdade =P

FiliPêra disse...

HAAHHAHA Agora que reparei a viagem. Fugi da aula de geometria!

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