Normalmente, ao escrever uma resenha, eu deixo para falar dos autores por último, encerrando o texto. Hoje eu vou fazer diferente, vou fazer o processo inverso, vou começar falando sobre os autores primeiro. As obras de Vaughan são sempre recheadas de pensamentos e reflexões, principalmente políticas, mas esta eu considero especial. Leões de Bagdá foi escrito na intenção aberta de passar uma mensagem e instigar uma reflexão profunda sobre a situação do povo israelense. E para isso, Vaughan recorre aos artifícios literários da Fábula, em uma jogada semelhante à de George Orwell, só que diferente.
Brian K. Vaughan é mais conhecido por suas histórias em quadrinhos, principalmente por seu trabalho em Y: The Last Man, este que deve ser de conhecimento de todos, e como o próprio titulo sugere, narra a história do ultimo homem na terra, já que todos os outros morreram ao mesmo tempo em uma catástrofe desconhecida. Aos meus olhos Y: The Last Man – ou Y: O Ultimo Homem, se você assim preferir – narra, mais do que qualquer coisa, como seria o mundo completamente na mão das mulheres e as diversas conseqüências sociais que isso causaria. Se você ainda não começou a ler Y é bom não formar a idéia do mundo florido e cheio de amor, na mão das mulheres o mundo não perde a sua crueldade. Y: The Last Man garantiu a Vaughan o Eisner Awards de melhor escritor em 2005 e só não recebeu mais elogios porque só teve 60 edições.
Ex–Machina, outra de suas obras mais famosas, narra a história de Mitchell Hundred, um engenheiro que após um acidente ganha a habilidade de falar com maquinas e objetos mecânicos, fazendo com que os mesmos obedeçam as suas ordens. Mitchell, querendo fazer mais do que suas habilidades permitiam, pela cidade de Nova York candidata-se a prefeito – e é eleito - e aqui entra toda a habilidade e genialidade de Vaughan. Eu particularmente sou fã de Ex-Machina, nela Vaughan não se ressente em tocar nos pontos mais polêmicos e delicados da política americana, tratando de temas como casamento gay e racismo, além de não deixar incólume a eterna rivalidade: Democratas x Republicanos. O interessante é que seu personagem não é Democrata e nem Republicano, sendo um candidato independente, algo que é perfeitamente legal nos Estados Unidos da América.
Embora eu tenha comentado sobre dois títulos autorais, Vaughan tem uma série de participações em diversos títulos na Marvel e na DC. Daria-me muito trabalho listá-los e, além disso, boa parte eu desconheço. São participações nos títulos mais conhecidos das mesmas como Batman, X-Men, etc. Embora seu sucesso seja absoluto no mundo dos quadrinhos, Vaughan vai além da nona arte, estendendo-se principalmente aos seriados de TV. Seu trabalho mais famoso é Lost onde ele entrou como produtor-executivo de história na 3ª temporada, foi promovido a co-produtor e a produtor na 4ª e 5ª temporada respectivamente. Na 6ª temporada ele pulou fora, então, àqueles que têm criticas a última temporada de Lost, saibam que a culpa não foi dele.
A arte fica por conta de Niko Henrichon e, sinceramente, não imagino um traço melhor. Cada quadro é um espetáculo a parte. A riqueza dos detalhes nos cenários e coloração são coisas magistrais. Mas uma das coisas que mais chama atenção é que Niko consegue dar as mais variadas expressões aos personagens - que são todos animais - sem precisar partir para um antropomorfismo. Se o roteiro de Brian K. Vaughan é genial, a arte de Niko Henrichon é a de um mestre. A junção foi perfeita para a criação de uma graphic novel fantástica.
Agora vamos ao que interessa...
O céu está caindo. A frase grasnada por um pássaro no galho seco de uma árvore abre o quadrinho. Zill, o leão, não agüenta mais a insistência do pássaro que não para de repetir a frase. Zill ameaça-o, mas cala-se ao ver enormes placas de metal rasgarem o céu sobre sua cabeça. Zafa, a anciã, aproxima-se e com o direito que somente os mais vividos possuem anuncia a Zill seus maus presságios. O leão, com a autoridade que só os machos acostumados com o cotidiano e uma vida sem desafio possuem, faz questão de descartar a possibilidade reiterando assim o seu mundo sem preocupações.
Ali, o filhote nascido no cativeiro, aproxima-se com a empolgação dos infantes. Entusiasmado e curioso, deseja saber o que eram aquelas coisas que passaram voando com tanta velocidade. Zill mais uma vez esquiva-se. A anciã manda-o procurar a mãe para tirar suas duvidas, mas Ali diz que ela encontra-se ocupada falando com os antílopes.
No momento em que conhecemos Noor, mãe de Ali e fêmea mais jovem, passamos a entender melhor cada um dos personagens e sua importância no contexto. Noor é mais jovem que Zafa, idealista e ansiosa por liberdade, cansada do cativeiro. Zafa é mais velha, com as maiores lembranças sobre os tempos de liberdade, os tempos de savana. Essas lembranças não são boas para Zafa, que traz, marcado na carne, os resquícios de uma época para ela traumática. Fica então mais que nítido o conflito ideológico entre Zafa e Noor, uma é completamente inconformada com o sistema em que vive, bolando planos e arquitetando alianças e fugas com animais que naturalmente são seus inimigos para alcançar a tão desejada liberdade. Zafa é o outro lado, velha e cheia de más recordações, não vê no mundo lá fora as tais maravilhas que Noor, argumenta que esta é mais nova e sem lembranças da realidade que é o mundo. Zafa e Noor, vão demorar bastante para se entender.
Antes que a discussão entre Zafa e Noor tivesse fim, o corpo de um asno em carne viva cai perto dos quatro. Eles acham estranho, cheiram e tentam entender de onde ele apareceu, como chegou ali voando. Antes que chegassem à resposta, a mesma chegou com força e barulho. A explosão jogou cada um para um lado, separando os quatro leões e jogando a ruína completa o Zoológico. Os três mais velhos conseguem se encontrar, mas o filhote continuou desaparecido. Ele encontra-se na posse dos macacos, que só o devolverem após uma ameaça da mais velha, que conhece bem as maneiras de se estraçalhar um macaco com os dentes.
Com o filhote sob a tutela dos três; Zill, Noor, Zafa e Ali vão começar a desbravar a liberdade que lhes foi concedida. Andando pelas ruínas de Bagdá, pouco a pouco vão descobrindo a inexistência de seres humanos por ali, seres humanos vivos, alguns corpos ainda serão encontrados. Os únicos vivos em seus caminhos são outros animais, com quem conversarão tentando entender a dimensão e a causa dos últimos acontecimentos. Noor conseguirá suas caçadas. Ali começara a descobrir que o mundo é bem maior que o espaço delimitado pelas grades. Zill depois de muitos anos se verá envolvido em uma disputa de vida ou morte, fazendo valer o seu espaço de líder do grupo. Zafa relembrará a sensação de uma caçada, e descobrirá que talvez esteja velha demais.
Essas são algumas das conseqüências da liberdade que os quatro leões irão encontrar, divididos entre lembranças e descobrimentos eles vão pouco a pouco abocanhando a sua fatia de mundo e descobrindo os prazeres de estar livre. O ápice disso é quando descobrem o pôr-do-sol, um horizonte em tons de cobre que valerá por todas as dificuldades que passaram. Nesse momento, somos jogados de volta ao centro da história, e vamos lembrar que os leões encontram-se em Bagdá, na capital iraquiana, libertada pelos heróicos soldados americanos, que confundem qualquer cidadão com um terrorista em potencial e por isso não se ressentem em sentar o dedo no gatilho.
Leões de Bagdá é indispensável para quem curte quadrinhos com teor político/crítico. Basta começar a ler e as analogias vão saltar aos seus olhos, tanto pela personalidade de cada um dos personagens, quanto pela situação em que os mesmos se encontram: presos em um determinado espaço, sem ter condições de mensurar todo o mundo além do estabelecido. Libertados pelas bombas americanas que não lhe trouxeram somente a “liberdade”, mas que lhes garantiram um mundo completamente destruído, uma nação em frangalhos, que até hoje está perdida entre tiros e explosões. Provavelmente porquê seus libertários ainda estão garantindo-lhes a liberdade, livrando-lhes de todo cidadão que pareça um terrorista em potencial, livrando-lhes de um problema terrível, uma coisa negra e viscosa que escorre abaixo dos pés dos iraquianos. Quando você terminar de ler Leões de Bagdá talvez seus olhos vejam para longe e você tenha a certeza definitiva de que a liberdade presenteada pode ser apenas um novo subterfúgio para arrancar-te aquilo que há de mais precioso.
TRECHO:
Zafa: Primeira Guerra? Ouça, meu pessoal e eu não estamos aqui há tanto tempo quanto você. O que é isso tudo?
Tartaruga: É sobre perder esposa, filhos, cada amigo inútil que você fez...
Ali: E como eles perdem?
Tartaruga: Há uma substância negra debaixo da terra, garoto. Veneno. Quando os andantes lutam, eles fazem ela jorrar no céu e despejam... no mar.
Titulo Original: Pride of Bagdá
Editora: Panini
Preço: R$ 19,90 (preço de capa)
Nota: 9,5