Desde a Guerra do Vietnã, a sociedade - especialmente a americana - aprendeu que a Imprensa ir a guerra pode ser chocante, e até decisivo. Por mais chocantes que possam ser números de soldados mortos, de gente mutilada e outras atrocidades, sem uma aproximação narrativa quase literária e emocionante pra contar ao menos uma dessas histórias, todo o choque se vai. Em outras palavras: cada história de guerra detalhada é mais importante que todas elas juntas e agrupadas na forma de números indistintos, os jornalistas devem ser como uma lupa ao mostrar aspectos que as próprias forças militares preferem esconder.
Ver a sempre chocante foto de Kim Phuc correndo, nua, fugindo de um bombardeio de napalm, é muito mais impactante do que ler a frase “o exército dos EUA pulverizou uma vila vietnamita com napalm” - frase que provavelmente viria acompanhada de uma tentativa de justifica-la. O mesmo pode ser dito da política. Richard Nixon cometeu crimes muito piores que Watergate, mas foi só quando a história foi detalhada como deveria, que os olhos da sociedade foram abertos.
O problema da relação imprensa-Forças Armadas é que geralmente os jornalistas recebem somente informações do próprio Exército, se tornando quase porta-vozes dos militares. Cobrir guerra é caro, dispendioso, e quando feito de forma independente - sem a logística do exército pagando os custos - exige repórteres quase insanos, como a trupe vista em A Caçada, filmaço com Richard Gere. Fora que se suas reportagens desagradarem os EUA… a sua sede de imprensa pode ser sumariamente bombardeada “acidentalmente” por forças aliadas, como experimentou a Al-Jazeera no Iraque.
O último veículo que conseguiu romper - duplamente - essa relação às vezes incestuosa de imprensa-de-quatro-para-forças-militares foi a revista Rolling Stone, dando mostras que ainda tem fôlego para experimentar o jornalismo contracultural que marcou suas primeiras décadas de vida. Em junho do ano passado a revista publicou o artigo Um general com idéias muito próprias, escrito pelo editor-contribuinte Michael Hastings, que pintou um quadro nada lisonjeiro de Stanley McChrystal, principal general de Obama na terra do Taliban. O resultado é que assim que a matéria foi publicada, McChrystal tomou um pé na bunda e foi substituído por David Petraeus.
Agora o tiro é ainda mais pesado. Chamada Kill Team (escrita por Mark Boal, roteirista de Guerra ao Terror), a nova reportagem da revista não mostra burrices de burocratas e comandantes preguiçosos - como na excelente reportagem Killer Elite, de Evan Wright, também da Rolling Stone -, mas sim um relato detalhado das ações de uma trupe de assassinos que só pretendia achar alguns seres vivos para matar - inimigos ou não. E ao final dos assassinatos, ainda tiravam fotos e mutilavam suas vítimas em busca de troféus.
Todos os episódios descritos na matéria aconteceram nos cinco primeiros meses do ano passado. “O plano era matar pessoas, senhor”, disse o soldado soldado Jeremy Morlock, 22 anos, no início do seu julgamento iniciado no dia 23 de março, acusado de assassinar três civis afegãos que não portavam qualquer arma. Ao fim do julgamento, ele recebeu a sentença de 24 anos de prisão após concordar em testemunhar contra quatro colegas do pelotão - chamado 3º Pelotão da Companhia Bravo - que atuava na província de Kandahar, no Afeganistão. Eles eram conhecido como o Kill Team (Equipe da Morte). Seus superiores alegavam não saber dessas atrocidades, mas a realidade mostrada pela reportagem parece ser outra, com soldados fotografando cada assassinato cometido, e ainda tendo tempo para editar um vídeo em que metralham um afegão com um helicóptero e inserem uma trilha sonora roqueira no meio.
Ao mesmo tempo em que se fazia de desentendido, os militares mais graduados se esforçavam para impedir que o caso chegasse a sociedade, procurando parentes de militares e confiscando câmeras e vídeos. Após a divulgação da revista alemã Der Spiegel, os militares fizeram um pronunciamento, onde afirmaram que as fotos “são repugnantes para nós enquanto seres humanos e contrárias aos procedimentos e valores dos Estados Unidos”. Imediatamente o coronel Thomas Collins foi nomeado para preparar as cortes militares para julgar os outros envolvidos nas atrocidades.
O maior medo dos americanos é uma nova onda de instabilidade no Afeganistão, onde as fotos devem ter um impacto muito maior quando forem divulgadas por lá, e provavelmente dificultarão ainda mais a continuidade do governo corrupto de Hamid Karzai.
Tudo começou em 15 de janeiro, quando o pelotão saiu de sua base em Ramrod e foi caçar talibans na vila de La Mohammad Kalay, escondida em meio a plantações de ópio. Mas a frustração foi evidente: nada de militantes, só fazendeiros desarmados. Antes, entre conversas e brincadeiras, componentes do pelotão haviam decidido: matariam na próxima incursão do grupo, nem que as vítimas fossem civis.
“Enquanto os oficiais do 3º Pelotão conversavam com um ancião dentro de um armazém, dois soldados [Jeremy Morlock e Andrew Holmes] se distanciaram da unidade até chegar ao extremo da vila. Lá, em uma plantação de ópio, eles começaram a procurar alguém para matar”, afirma a reportagem, com base em dados de investigação das próprias Forças Armadas.
"O consenso geral era que, se nós estamos indo fazer algo realmente louco, não queríamos ninguém por perto para testemunhar isso", relatou mais tarde um dos soldados.
Após algumas andanças tediosas, a dupla escolhe Gul Mudin como alvo, que estava por ali arando a terra, longe da vista de todos. Gul era um adolescente de 15 anos - Morlock tinha 21, e Holmes tinha 19 -, e recebeu a ordem de ficar parado. Ele obedeceu. Os soldados covardemente correram para trás de uma parede de tijolos e jogaram uma granada nele, ao mesmo tempo em que cuspiram uma saraivada de balas com um fuzil M4 e uma metralhadora- padrão das Forças Armadas. Morlock ainda teve o sangue frio de correr e berrar no rádio, simulando um embate genuíno.
“Quando um sargento perguntou aos soldados o que tinha acontecido, Morlock disse que o garoto estava prestes a atacá-los com uma granada”, relata outro trecho da matéria.
A história era tão mal contada - o menino era muito novo, estava sozinho, não tinha armas, o lugar não tinha pontos de esconderijos, talibans geralmente não atacam de dia - que o capitão Patrick Mitchell, que a ouviu, duvidou. "Eu apenas pensei que era estranho que alguém iria vir para cima e jogar uma granada na gente", disse Mitchell depois aos investigadores. Mesmo com a suspeita, Mitchell não ordenou que fosse despendida ajuda ao garoto, mas ao invés disso, emitiu uma ordem ao sargento Kris Sprague para que “se certificasse que ele estava morto”. Sprague armou um rifle e atirou duas vezes na cabeça do menino.
Durante seu julgamento, Morlock afirmou que Gul “não representava nenhuma ameaça”. Antes da chegada dos seus superiores, o soldado ainda teve tempo de fotografa-lo e cortar seu dedo mindinho para levar como recordação. Os outros o seguiram, e tiraram fotografias junto ao corpo, num bizarro ritual de sadismo, que ainda quebrava o protocolo oficial do Exército dos EUA.
A reação dos líderes militares não poderia ser mais padronizada. Morlock não foi punido - guerra é guerra, né… como dizem os ultraconservadores metidos a polícia do mundo - de forma alguma, e o entusiasmo adrenalinesco do episódio acabou dando força para o Kill Team assassinar mais quatro civis nos meses seguintes. A direção do Exército classificou os episódios envolvendo o 3º Pelotão como perpetrados por uma "unidade de malfeitores, operando sem o conhecimento de seus superiores”. Promotores militares estabeleceram um cerco informacional ao redor de toda a Bravo, e seus soldados foram impedidos de dar entrevistas.
Mas, os registros que a Rolling Stone teve acesso, mostravam outra coisa. Dúzias de pequenos grupos formavam outros Kill Teams, “operando abertamente”, com os superiores deles fingindo que nada estava acontecendo. A investigação tratou ainda de confirmar que os soldados efetivamente sabiam que aquela conduta era ilegal.
Esse é apenas o trecho inicial da reportagem, há muito mais por lá, e Eu recomendo que leiam tudo, caso tenha estômago. Há também diversas fotos e dois vídeos revoltantes, com uma emboscada a um motociclista, e outro com os soldados metralhando dois afegãos num ataque área numa aérea descampada - estômagos AINDA MAIS fortes são exigidos aqui.
É só clicar no link abaixo e conhecer o submundo da guerra que todos sabem que existe, mas poucos têm a coragem de mostrar.
[Via Rolling Stone]