Num mundo ideal, as agências reguladoras do governo federal brasileiro servem para o único propósito específico de impedir manobras abusivas por parte das empresas de cada setor que elas regulam. Duas das mais importantes - Anatel (Agência Nacional de Telecomunicações) e Aneel (Agência Nacional de Energia Elétrica) - têm como principal função impedir que corporações pratiquem preços abusivos, formem cartéis, multem indevidamente seus usuários, e assim vamos. É basicamente um canal de defesa da população contra uma possível tirania corporativa.
Mas a realidade se mostra bem diferente do que está no papel. Empresas de energia elétrica mandam pra frente aumentos da ordem de 23% (por exemplo, nunca que elas sobem tanto o preço) sem qualquer punição e quando cobram indevidamente, por um erro de cálculo, a Aneel ainda se recusa por unanimidade a devolver R$ 7 bilhões aos consumidores. Não sei para vocês, mas para mim parece uma mostra clara que a balança desses departamentos do governo sempre pendem para as empresas, é como colocar raposas protegendo galinheiros.
Mas em alguns casos a coisa ultrapassa qualquer bom senso e se transforma num caso de indignação. Imagine a seguinte situação, usando a mim como exemplo: Eu contratei uma linha telefônica e junto pedi a banda larga da Oi/Velox (que por coincidência é o que Eu uso), e logo depois instalei um roteador wireless e compartilhei a conexão com três vizinhos, e no fim do mês a gente divide a conta em partes iguais. Acho que todos concordariam que é o tipo de situação que se encontra a cada esquina, seja por conveniência ou pelo fato simples que o serviço é abusivamente caro. Em tempos do governo brasileiro anunciando ao mundo que estamos migrando pro Primeiro Mundo, entrando numa era de Inclusão Digital (termo que está rapidamente alcançando um status pejorativo), que internet será direito de toda a população e outros blábláblás propagandistas, ter pessoas de baixa renda compartilhando uma rede de forma lícita deveria ser aceitável, afinal, as contas estão em dia.
Voltando ao caso… os fiscais da Anatel, os guardiões dos interesses do consumidor sobre a fome corporativa das empresas de telecomunicações, um dia chegaram na minha casa e não gostaram de me ver compartilhando a rede com dois vizinhos e tornando desnecessário que eles adquirissem uma linha telefônica própria. Logo apreenderam meu computador, o modem e o roteador lá instalado, e como se a atitude já não fosse ditatorial o suficiente, ainda deixaram uma multa de R$ 3 mil, me acusando de estar “prestando serviços de provedor de acesso à internet sem a devida autorização da Agência”.
Bom, como disse lá em cima, o caso não rolou comigo, mas com três moradores de Teresina-PI que tiveram os nomes mantidos em sigilo. Paulo Gustavo Sepúlveda e Lucas Vilar, do escritório Viana & Viana Advocacia, assumiram a defesa dos acusados:
“Assumimos a causa porque estamos verdadeiramente indignados com a atuação da ANATEL. Enquanto os cidadãos estão sendo violentados diariamente pelos abusos e ilegalidades cometidos pelas operadoras de telefonia e de provimento de acesso à internet, a Agência, que tem por função primordial regulamentar e fiscalizar a prestação de serviços destas empresas, preocupa-se em tosar ilegalmente o acesso de pessoas humildes à internet, o qual deveria ser garantido a todos pelo Estado, considerando sua relevância”, afirma Paulo Gustavo
Bom, não sou formado em Direito (se alguém tem conhecimentos específicos sobre o assunto, Eu ficaria feliz que se manifestasse nos comentários), então vou corroborar as declarações dos advogados das vítimas e reproduzir os comunicados da Anatel, sem qualquer opinião sobre legislação.
Segundo o mesmo Paulo, compartilhar uma conexão se afasta de crime pelo fato do contratante da linha não possuir o intento de obter lucro com a divisão do serviço, e por não haver modificação técnica na divisão da conexão. Ainda segundo ele, se fosse crime, o compartilhamento dentro de uma mesma residência com dois ou mais computadores também seria crime, pois ocorre nas mesmas condições. Para piorar a situação, o advogado disse que esses fiscais tampouco têm a autoridade de sequer entrar na residência de alguém com o intuito de expedir uma multa sem mandado judicial.
Carlos Bezerra Braga, gerente da Agência da Anatel no Piauí, diz que compartilhar uma rede só é crime se fora do âmbito de uma residência (ele completa dizendo “exceto quando envolver o uso de radiofreqüência”… não preciso comentar que Wi-Fi É radiofrequência, o que me parece colocar o caso como legalmente aceitável), ou sem uma autorização (autorização que, pra começar, já exige um pagamento de R$ 9 mil, entre outras taxas). Ele diz que no caso citado no texto, as duas infrações foram cometidas: houve expresso compartilhamento intraresidencial e o usuário não possuía uma autorização da Anatel.
Braga frisa que o grande problema está na prestação indevida do serviço por parte de usuário, que não é uma empresa para ter tal privilégio. Como pessoa física, o usuário não teria as responsabilidades jurídicas exigidas de uma empresa, podendo por exemplo desligar a conexão, e os outros que usam o serviço não ter a quem recorrer (não vou ficar aqui divagando que uma parcela gigante dos que assinam serviços de internet no Brasil ficam sem a rede e não têm a quem recorrer da mesma forma).
Gerente da Agência da Anatel no Piauí, Carlos Bezerra Braga
Analisemos o caso sob dois ourtos aspectos: 1) a qualidade do serviço prestado no Brasil e 2) a relação dele com outros exemplos possíveis. Vá até o Google e faça uma pesquisa por Brasil banda larga. Notícias como Banda larga no Brasil é cara, lenta e restrita, avalia Idec; Banda larga no Brasil é cara e ruim, entenda; Banda larga no Brasil é uma das piores do mundo; Brasil tem a quinta pior banda larga do mundo, etc; logo aparecem. Então, para início de conversa, o tal serviço que a Anatel defende é de ruim pra péssimo. Agora dê uma passada num Reclame Aqui da vida (ou ligue pro Procon da sua cidade, pra coisa ficar ainda mais oficial). Lá existe um ranking, que nos diz claramente quais as empresas que mais recebem reclamações (e para fins estatísticos, vamos considerar que todas as reclamações têm algum fundo de verdade). No ranking dos dez mais do Reclame Aqui, SEIS empresas são de telefonia/internet. NESSE índice do Procon-SP (não achei no próprio site, ficamos com esse), das dez mais, quatro são de telefonia.
Em outras palavras, podemos concluir - um pouco apressadamente, é verdade - que além da qualidade técnica da banda larga do Brasil ser uma das dez piores do mundo, o serviço oferecido ainda é péssimo e leva a milhares de usuários a reclamarem. Não vou aqui comentar o monopólio que havia no setor até pouco tempo, o que ajudou no engessamento do serviço, porque creio que todos já conhecem esse ângulo da história.
A outra análise necessária, a meu ver, diz respeito ao precedente que se abre em casos assim. Empresas com vitórias em situações como essa, recebem carta branca para invadir, mandar e desmandar na vida dos que contratam o serviço dela. Se Eu adquirisse uma linha telefônica e colocasse extensões na casa dos meus dois vizinhos e rachasse a conta em três partes iguais isso provavelmente seria ilegal, mas para mim fica dentro dos limites do bom senso: Eu não estaria lucrando (o que parece justamente o caso do usuário de Teresina multado) e ainda ajudaria outras duas pessoas sem linha telefônica a possuírem uma.
Estar na lei, para mim não constitui argumento irrefutável, pois todos nós sabemos da ligação escandalosa corporações-política, especialmente em doações de campanha. Ainda mais quando essa lei dá vazão para que uma agência do governo que deveria proteger os consumidores dos abusos corporativos, serve justamente para o serviço contrário: proteger as corporações e ainda aparentemente roubar computadores de um cidadão.
Posso estar errado, mas vejo a Anatel como uma simples marionete nas mãos das poderosas empresas (estrangeiras) de telecomunicações que operam no Brasil. Um caso como esse serve unicamente para intimidar usuários dos serviços dessas empresas, obrigando a todos a pagarem por uma linha única. Não poderia esperar atitude diferente de um país com um dos piores serviços de internet do mundo.