[Primeiramente, meus mais sinceros agradecimentos a minha amada Nane Ulsan, pelas explicações acerca do Tarô, e pelas nossas conversas sempre elucidativas sobre Filosofias Orientais. Sem ela esse texto não seria o mesmo; ganhou o cargo de Consultora Editorial para Assuntos Transcendentais. E agradeço também ao Rodrigo "Lorde Velho", por ter me indicado a série depois da minha decepção com a última temporada de Lost e ter me incentivado a escrever esse texto]
Tudo é impossível até não ser mais.
Ben Hawkins, Avatar da Luz
Como avisei, esse texto será cheio de spoilers, resultantes de uma análise da mitologia e das referências da série. Portanto, se pretendo assistir a série, não leia agora. Para quem não assistiu a série, será um pouco difícil entender o que escrevi, já que é necessário um conhecimento dos acontecimentos do programa para associa-los as referências mitológicas. Mas, mesmo se não tiver visto, fique à vontade pra ler, visto vários conceitos empregados na série serem universais. Eu fiz o possível pra tornar o texto coeso, explicativo e linear, mas em alguns momentos vou citar elementos da série que só explicarei mais abaixo. Portanto, é só ler o texto completo.
A grande atração de Carnivàle, como já exposto no outro texto, é o confronto entre o Bem e o Mal e a vasta mitologia arraigada a essa luta. Aqui esse confronto existe através de Avatares da Luz e das Trevas que a cada geração entram em combate. Na personificação mostrada na série eles, são justamente Ben (da Luz) e Justin (das Trevas). Toda a narrativa joga pistas bastante importantes acerca da fusão mitológica e alegórica de Carnivàle, mas muito disso termina por passar despercebido graças às múltiplas camadas narrativas que Knauf construiu - fora alguns não totalmente explicados por causa do prematuro cancelamento da série. Sonhos, visões dentro de sonhos, tarô, profecias, ordens secretas... vários dos elementos presentes no programa exigem um certo background por parte de quem assiste pra não ficar no escuro a todo o momento. A diferenças da série para um filme de vampiro e zumbi, por exemplo, é que as mitologias expostas ali não são integrantes do Inconsciente Coletivo, sendo necessários certos estudos para compreendê-las em sua totalidade. É de se igualar Carnivàle ao arco Arcádia, de Os Invisíveis (inclusive existe uma referência ao contexto desse arco no meio da segunda temporada, quando Henry Scudder revela que o segredo dos templários se encontra na igreja de Rennes-le-Château), onde uma gama de tramas e subtramas míticas e literárias de difícil compreensão leva o leitor/espectador a entrar num dilema bem drástico: ou mergulha de cabeça no universo da série e tenta compreender o que tá rolando ali, ou simplesmente desiste e conclui que aquilo não é pra ele. Muitos desistem, é natural (e triste) que não queiram gastar um pouco de energia mental para escrutinar uma trama densa, mas ao mesmo tempo bem gratificante; enquanto os que se propõe a isso se tornam fanáticos conhecedores de detalhes. Meios termos pra esses pólos são bem raros.
Na frase inicial proferida por Samsom na abertura da série está a chave pra compreender muito do caráter da luta: "E a cada geração nascia uma criatura de luz e uma criatura de trevas". Aqui fica clara a natureza básica de como os embates se localizam no Espaço-Tempo, com cada Avatar distinto lutando por seu lado. Avatar é um termo hindu que significa a encarnação de um ser supremo, divino. Por isso é tão natural dentro do Hinduísmo que se adorem crianças e adultos com deformidades, encarando-as como dádivas e reencarnações de deuses - o que me remete a uma das passagens mais geniais de Do Inferno, obra prima de Alan Moore, quando Willian Gull diz a John Merrick que se ele tivesse nascido na Índia, seria adorado como reencarnação de Ganesh. O escrito indiano Vedas provavelmente possui a melhor definição do termo: "Avatara, ou a encarnação da Divindade, descende do reinado divino pela criação e manutenção da manifestação em um corpo material. E essa forma singular da Personalidade da Divindade que então se apresenta é chamada de encarnação ou Avatara. Tais Personalidades estão situadas no mundo espiritual, o reinado divino. Quando Eles transcendem para a criação material, Eles assumem então o nome Avatara". Não sei até onde a aplicação absoluta dessa definição é correta em relação aos personagens antagônicos da série, pois aqui os Avatares são humanos com poderes a serem desenvolvidos - cura, profecia, matar e controlar pessoas com o pensamento - além de representações de forças opostas, mas dotados de personalidade e livre arbítrio. Em resumo, não são necessariamente deuses, mas sim possuidores de uma essência divina.
Os nomes dos personagem também retratam essa dualidade: Hawkins remete a falcão, ave nobre, do dia; e Crow remete a corvo, ave sombria, necrófaga. O que diferencia a série do contexto aristotélico de oposição positivo-negativo é a sobreposição da personalidade dos Avatares sobre a própria missão deles. Geralmente, em narrativas desse estilo, os personagens agem inconscientemente, são meras marionetes da encarnação deles, sujeitos a um Determinismo extremamente reducionista, resumindo a trama a um embate de entidades poderosas, como vimos na conclusão de Matrix Revolutions. Em Carnivàle, Scudder quebra essa escrita, e torna sua condição de Avatar das Trevas - que deveria ser instintiva, inconsciente - consciente, o que o leva a abandonar sua missão, desfigurar o próprio rosto e sumir, tornando-se peça-chave da busca da penúltima geração de Avatares (já falo sobre a linha sucessória da Dinastia Avatárica). Por outro lado, é fácil constatar que os dois Avatares da geração focada na série não tomaram essa consciência, principalmente Justin, que parece sem rumo e controlado por seu inconsciente das Trevas, enquanto Ben recebe a ajuda do Avatar da Luz anterior, Lucius Belyakov, a Gerência.
A hereditariedade dos Avatares é outro conceito a ser explicado, pois não necessariamente o filho de um Avatar da Luz vai ser um da Luz, por exemplo. Esse tipo de troca ocorreu na geração de Avatares da série: Justin, das Trevas, é filho de Belyakov; enquanto Ben, o da Luz, é filho de Scudder, que era das Trevas. Os poderes deles são diversos, embora não descritos totalmente ao longo da série. Pelo fato da série ter sido cancelada apenas com um terço dela lançado, Knauf fez declarações acerca dos poderes deles: somente os Avatares das Trevas sofrem dores físicas quando os Avatares da Luz usam suas habilidades; os dois podem transmitir ou receber visões de outros, bem como localizar a proximidade do seu oponente de modo físico, o que contribui para a inevitabilidade do confronto deles.
Abaixo está uma genealogia de uma linhagem avatárica, mostrando o Alfa, que dá origem a toda a linhagem, os Profetas, os Príncipes Ascendentes e o Ômega - só Alfa e Ômega são obrigatoriamente mulheres, os Avatares são obrigatoriamente homens (é por uma interpretação do Vedas, que muitos consideram Jesus Cristo uma divindade feminina, após ele ter dito que é o Alfa e o Ômega).
No contexto da série, o Alfa, segundo Daniel Knauf (como a série não se desenvolveu o bastante, muito do descrito aqui é derivado de escritos que ele mandou pra HBO buscando a aprovação da série), seria uma mulher pré-diluviana e todas as informações sobre ela se perderam com a destruição de Alexandria e sua vasta biblioteca. Em Alfa, a matriarca da linhagem avatárica, estariam os dois poderes antagônicos unidos e equilibrados, e a passagem deles para um próximo integrante seria como obra ocasional. O parto de Alfa é obrigatoriamente de gêmeos, cada um deles representando um lado da luta, além de serem os primeiros Profetas da Luz e das Trevas. A sucessão de nascimentos daria origem a duas Dinastias (ou Casas) distintas, que poderiam perdurar por séculos ou morrer em uma geração. O próprio poder avatárico impede que mais de um sucessor seja gerado, pois a mãe de cada um dos avatares se torna estéril e insana após o parto, como bem prova o estado da mãe de Ben Hawkins, a mãe de Scudder - que arrancou os próprios olhos - e a mãe de Sophie, eternamente vegetalizada depois de dar a luz a uma filha de um Avatar das Trevas.
Sophie é o elemento Ômega da linhagem, fechando-a completamente, por ser filha de um Avatar das Trevas e ter feito sexo com um Avatar da Luz. Ela contém as duas Dinastias dentro de si. O Profeta é o possuidor do sangue azul, também chamado de Vitae Divina. Ele seria o Avatar atuante, e mesmo que exista um sucessor dele nascido, somente através de um ritual que veremos logo abaixo ele abandona essa condição e seu sucessor deixa de ter sangue vermelho pra ter sangue azul. Os Vectori são integrantes (geralmente) femininos intermediários da Dinastia, e mesmo inseridos na genealogia avatárica, não possuem os poderes dos Profetas, mas podem desenvolver pequenos poderes e níveis diferentes de insanidade.
A sucessão de Profetas ocorre com a benção, quando o sucessor já nascido - chamado de Príncipe Ascendente - mata seu antecessor. Mas existem certos requisitos para essa morte ocorrer da forma correta. O Profeta assassinado pelo Príncipe deve ser pego de surpresa para evitar que ative defesas psíquicas. Ele não pode estar drogado, pois drogas trazem confusões mentais que estragam a benção. Caso o Príncipe assassine o Profeta fora dessas condições, se tornará completamente insano. Se o Profeta morrer por qualquer outro fator, o Príncipe se torna Profeta, mas com deficiência de poderes, que jamais atingirão seu auge. Knauf, em um fórum de fãs de Carnivàle, faz insinuações sobre a sucessão avatárica ao longo da história, apontando Buda, Maomé e Jesus como Avatares da Luz, e grandes conquistadores como César, Alexandre, Vlad como Avatares das Trevas. Além disso, Rasputin seria o início de uma das Dinastias sendo levada pra Rússia. Só é importante frisar que boa parte desses conceitos e nomes não chegaram a ser inseridos na série, pelo seu prematuro cancelamento.
Imagens da abertura da série
Cartas Lua e Sol
Na abertura da série encontra-se outra pista sobre a natureza dos personagens, já que ao final da sequência as duas cartas (lâminas) de tarô que sobram são a Sun e Moon - ambos os símbolos representam a dualidade presente no próprio logotipo do circo, que possui um sol e uma lua -, ou Deus e o Diabo. Toda a abertura da série mostra uma sucessão de acontecimentos pós-Fim da Última Era da Magia, com a associação de cartas de tarô com símbolos modernos da Era da Razão - a Torre com o Capitólio, a Morte com criminosos em massa, como Stalin e os líderes da Ku Klux Klan, o Mago com os grandes representantes dos circos modernos, como músicos, esportistas e celebridades -, mostrando como a degradação da existência humana se acentuou com o triunfo Iluminista-Materialista. E é nos sonhos e visões que os personagens (e nós) descobrem várias coisas relativas a própria natureza da missão deles. Essa sobreposição de camadas de realidade - realidade misturada com sonhos, onde os sonhos e visões geralmente são mais importantes do que os fatos - é um dos principais motivos pelas quais os espectadores, e mesmo os críticos de TV experientes, reclamaram do modo como Carnivàle é narrada. O crítico de TV do site The Midway admitiu isso, afirmando que a primeira temporada de Carnivàle é "muito artística e esotérica, e a sua falta de envolvimento o impediu de compreender o que diabos estava acontecendo, o que pode ser um problema para uma série dramática da televisão".
É durante os sonhos/visões, por exemplo que conhecemos a história dos dois soldados que se enfrentam durante a I Guerra Mundial. E nesse exemplo é fácil perceber como a série se utiliza desse tipo de elemento para fisgar um público mais sofisticado. É possível sentir que o embate é importante, embora a narrativa não nos diga como - ao menos não da forma fácil. O roteiro ainda faz pior e relaciona esse embate com personagens misteriosos à Justin e Ben, ao colocar Ben sem pernas e somente com um braço ao lado de um vitorioso reverendo Justin. Para piorar, nessa altura dos acontecimentos pouco conhecemos a respeito de Avatares e embates históricos.
Carnivàle usa fartamente desse modo de construção dramática. E quando as revelações chegam, elas vêm de forma nada fácil. É durante uma das experiências oníricas de Ben, por exemplo, que lemos a palavra repetida TARAVATARAVA repetida a exaustão no interior de uma mina. Mais tarde, durante uma tentativa de suicídio, Ben é capaz de rearranjar a palavra e perceber que é AVATAR (o que mata o questionamento que alguns podem ter a respeito da associação de Avatares com a sucessão genealógica dos personagens da série). A partir daí, a série não se presta a explicar como se comporta uma linhagem avatárica, somente expondo algum conceito que difere da mitologia estabelecida pelo hinduísmo. Então, a iniciativa de buscar conhecimento é de quem assiste - e mesmo que não o busque compreenderá tudo, ainda que de forma menos ampla. Dessa mesma forma, ouvimos várias vezes durante a série a frase Todo Profeta em sua casa. Como a série possui um vasto conteúdo religioso, é de se imaginar que seja algo relacionado a Bíblia, mas a frase logo pode ser ligada ao conceito de Dinastia, onde Ben e Justin, como Príncipes Ascendentes, devem se tornar o Profeta de sua geração, realizando o ritual da benção.
Nesse ponto, alguns (principalmente os que viram a série, já que para mim seria bastante custoso dissecar a mitologia e ao mesmo tempo explicar toda a sucessão de eventos das duas temporadas) devem estar se perguntando a relação dos Avatares com os sonhos e visões acerca do Condutor, o Homem Tatuado (mesmo com a revelação de que Justin seria ele). Dentro da série, a árvore da tatuagem seria a famosa Árvore do Conhecimento do Bem e do Mal, que foi morada do Diabo incorporado de serpente no Jardim do Éden, palco da primeira tentação da história da humanidade. A Árvore, como seu nome deixa claro, representa conhecimento, representa abrir os olhos, como explicou a Serpente para Eva. Ela seria o ponto-chave do coração do Condutor, que é o Avatar das Trevas da última geração, prenunciando a destruição que viria através do Falso Sol. Justin é o Condutor, o prenúncio do Armagedom vindouro, e como tal só pode ser morto por um golpe num dos ramos da árvore tatuada dado por uma faca banhada com Vitae Divina - assim como pode ser visto no último episódio da segunda temporada (só lembrando que a faca de Hawkins havia sido banhada pelo Vitae após ele matar Belyakov). O Condutor daria origem também ao Anticristo, que na série é Sophie, como prenunciou Lodz depois de possuir o corpo de Ruthie e escrever com batom num espelho que Sophie é o Ômega.
Então, resumindo tudo que vimos até agora, pra facilitar. Os Avatares da série fazem parte de duas Dinastias distintas com uma matriarca em comum (Alfa). Os gêmeos patriarcas dessas dinastias que Alfa gerou foram os primeiros Profetas. Profeta é o Avatar atuante, possuidor do sangue azul, o Vitae Divina. Uma Dinastia pode gerar Avatares das Trevas e da Luz. O sucessor do Profeta é o Príncipe Ascendente, que deve matar o Profeta para se tornar o Avatar atuante. Vectori são outros filhos nascidos de mães de Avatares - nascidos antes, já que depois de parir um Avatar, a mãe enlouquece -, e geralmente possuem pequenos poderes ou algum nível de insanidade. O fim da linha de sucessão avatárica - que é o evento narrado na série - é o nascimento do Ômega, uma mulher que possui ligações com as duas Dinastias antagônicas. No caso, é Sophie, que é filha de Justin e fez sexo com Ben. Para anunciar o fim dessa linhagem, existe a figura do Condutor, que é o genitor do Ômega. Agora continuando...
O Condutor
Na fala inicial de Samson no primeiro episódio da segunda temporada podemos entender melhor como a geração de Avatares Scudder-Belyakov foi de fato única: "Usando roupas de um combatente e chamando ‘a guerra de todas as guerras’, aquele das trevas tentou enganar seu destino, vivo como um mortal. Então, ele fugiu através do oceano, até um império chamado América. Mas com sua mera presença, um câncer corrompeu o espírito da terra, pessoas ficaram submissas a tolos que falavam muito e não diziam nada... para que a opressão e covardia eram virtudes... e liberdade uma obscenidade. E nesta terra de trevas, o profeta perseguiu seu inimigo até que, subjulgado pelos ferimentos, ele se voltou para o próximo na antiga fileira de luz. E foi assim que o destino da humanidade acabou por repousar nos ombros fracos do mais relutante dos salvadores".
A fala remete a trajetória de Belyakov e de Scudder, que transferiram os confrontos das Dinastias para os EUA. Henry Scudder combateu na I Guerra Mundial - que foi chamada de "a guerra para acabar com todas as guerras" - e estava sendo caçado por Belyakov. Numa dessas caçadas, Belyakov foi surpreendido pelo urso Bruno, que pertencia a Lodz. O ataque o deixou sem as pernas e um braço e Scudder aproveitou e fugiu após conhecer Lodz. Poucos anos antes, Belyakov havia tomado consciência de ser membro de uma dinastia avatárica e tentou matar seu próprio filho após ter estranhas visões depois do nascimento dele - mas ele e a irmã Iris (que é uma Vectorus) foram resgatados pelo reverendo Norman e passaram a viver nos EUA. Scudder combatia na Europa porque havia sido condenado por pequenos crimes nos EUA e no pós-guerra acabou se juntando ao circo de Lodz - que logo percebeu os poderes dele - em apresentações pela Europa devastada. Belyakov, por outro lado, lentamente se recuperou de seus ferimentos e se pôs a estudar manuscritos antigos até entender completamente a essência dele. Scudder podia sentir que Belyakov o procurava e se mudava constantemente.
De um atrito com Lodz resultantes dessas andanças, ele fez a troca: deu poderes paranormais a ele em troca da visão dele. Essa concessão de poderes resultou numa ligação mental entre eles, que Belyakov compreenderia quando encontrou Lodz em Veneza, prometendo a ele restaurar a visão caso o ajudasse a encontrar Scudder. Scudder, por sua vez, retorna para a América, se casa e tem um filho, mas volta a fugir e morar em diversas cidades diferentes quando pressente a chegada de Belyakov. Em Babylon, mora numa mina por um tempo, e acaba se unindo ao circo Hyde & Teller Company, onde trabalha por quase um ano e conhece Samson e vários outros freaks presentes na série. Belyakov usa a ligação mental de Lodz para chegar ao paradeiro de seu inimigo e compra o Hyde & Teller Company, mas Scudder escapa dias antes. Como novo dono, Belyakov muda o nome do circo para Carnivàle (e o dele próprio para a Gerência) e passa a rodar uma série de cidades em busca do seu oponente espiritual, substituindo Samson por Lodz como co-gerente. Quando Lodz falha ao prever que Scudder entrou na Ordem dos Templários, Samson retorna a seu antigo emprego. Dezoito anos depois de comprar o circo, Belyakov sente que Ben Hawkins tem idade suficiente para se juntar a ele, e o aborda, dando início a primeira temporada de Carnivàle.
Símbolo dos Cavaleiros Templários na série
Outros conceitos inerentes a série merecem explicação. A Ordem dos Templários é descrita no documento inicial de Knauf entregue a HBO - o Carnivàle: The Pitch Document - como uma "fraternidade de companheiros de viagem, um desdobramento contemporâneo de uma antiga ordem de monges guerreiros inicialmente ligados a Igreja Católica Romana, com a missão de localizar e auxiliar o Avatar [da Luz]. No final do dia 14 século, a ordem foi injustamente acusada de heresia em massa, a maioria de seus membros foram presos, torturados e queimados na estaca. Os poucos sobreviventes da Inquisição se esconderam, e formaram uma sociedade secreta assegurada por juramentos de sangue, cimentados por rituais misteriosos". O documento continua descrevendo-a, dizendo que seus membros esqueceram da missão original da Ordem, passando a simplesmente desempenhar serviços comunitários. Mas um círculo de poderosos membros se mantinham fiéis na busca de novos Avatares, embora a falta de estudos destes acabou por minar sua capacidade de ação e terminando por ajudar Avatares das Trevas, como é o caso de Scudder. Knauf afirmou depois que os Templários apareceriam novamente em temporadas posteriores, e a importância deles seria levemente aumentada.
O Tarô é um elemento bastante importe a mitologia da série - como expliquei ao descrever um pouco a abertura do programa -, prenunciando vários acontecimentos importantes. As leituras de Sophie no primeiro episódio, por exemplo, revelaram fatos passados da vida de Ben relacionados ao poder de cura dele, enquanto no quinto episódio da segunda temporada, Sophie repete a visão de Ben acerca da explosão de Trinity, dessa vez observando ela mesma inserida na visão, beijando Ben em meio ao cogumelo atômico. O baralho usado por Knauf para estruturar o esoterismo de grande parte da primeira temporada é o Rider-Waite, um dos mais usados no meio místico. Em alguns episódios posteriores ele fez certas misturas de baralhos, inserindo elementos do Tarô de Marselha - o mais conhecido e usado no Brasil -, enquanto na abertura ele uniu pinturas clássicas aos Arcanos do Tarô.
No primeiro episódio da segunda temporada, Ben se revolta com a armação de Belyakov para matar Lodz e fazê-lo compreender o mecanismo de transferência de vida que é a base do poder curativo dele. Para fazê-lo entender sua missão, ele induz uma visão, colocando Hawkins no meio de um deserto onde soa um alarme e uma gigantesca explosão ocorre. Essa visão se liga diretamente a fala inicial de Samson - "E foi assim até o dia em que um falso sol explodiu sobre Trinity, e o homem trocou para sempre a magia pela razão" - sendo o "falso sol" a bomba atômica. Aparentemente, a missão dos Avatares das Trevas é justamente preparar o caminho para esse evento, que seria o prenúncio de uma Era particularmente sangrenta (Guerra Fria, isso logo após as explosões atômicas no Japão). A missão deles seria justamente acabar com a Era da Magia. Reforçando isso, temos a fala de Justin proferida no meio da explosão, durante a visão dele: "Seu filho de serpentes, quem lhe mandou fugir da fúria que está por vir?", dando uma idéia de inevitabilidade da explosão de Trinity. Em várias legendas, o termo Trinity foi traduzido como "trindade" ou "todos nós", o que é uma pequena incoerência. O mais correto seria manter o termo, pois é uma clara referência a Experiência Trinity, o primeiro teste nuclear da história, feito em Novo México.
Bom, isso é o que consegui identificar vendo a série uma única vez e pesquisando um pouco os roteiros de Knauf. Naturalmente existe bem mais para se achar ali, e outras coisas que com certeza seriam inseridas nas outras quatro temporadas. Mas a série fica como exemplo de bom uso temático para a criação de um Universo único, coeso e original. Pena que o público não esteja muito preparado para absorver algo com tamanho nível de complexidade. No mais, Carnivàle é uma mostra de como alta sofisticação narrativa e temática está intimamente ligada a qualidade.
[Referências]
Rennes-le-Château
Dust Bowl
[PDF] Carnivàle: The Pitch Document
Experiência Trinity
Vedas
Tarô