Por Diego Jordan
Em 1990, Recife foi considerada a 4ª pior cidade do mundo. Alguns anos antes dessa notícia, com lama no meio das canelas, correndo por dentro dos mangues atrás de caranguejos na periferia daquela Recife, formava-se um menino-caranguejo. Ele chapinhava de um lado a outro cheio de energia e acompanhado de amigos. Toda a sua preocupação começava ali, todo seu desenvolvimento embrionário como um artista cheio de preocupações sociais. Recife podia ser o começo, mas não era o fim. Antes de 1997 chegar, Chico teria o mundo.
Recife era ainda uma cidade um tanto fechada para coisas diferentes. Isso não foi obstante para que Chico juntasse na mesma panela diferentes ritmos e formasse algo que nem as revistas mais especializadas esperavam. Mas essa história não começa aqui, começa na mesma época que Chico corria pelos mangues, essa história começa quando Chico ainda em fase de desenvolvimento escutava James Brown. Talvez por isso Chico andasse sempre pelos cantos batucando nas mesas, tentando sempre desenvolver uma nova batida para um novo Funk, podemos colocar o Rei do Soul como uma das primeiras, talvez até mesmo a primeira, grande influência de Chico.
A vida de qualquer ser humano é repleta de experiências, a vida de Chico não foi diferente, e andando de lado a lado o menino caranguejo chegou a Legião Hip-Hop. Juntamente com Jorge e outros amigos, Chico debruçou-se sobre a poesia das ruas, sobre o grafite e a dança. Esse provavelmente foi um momento que serviu de grande catalisador para as composições que mensuravam os problemas de Recife, os problemas da vida moderna e os problemas sociais tão presentes na sociedade brasileira.
Embora as experiências musicais estrangeiras fossem uma constante na sua vida, o grande diferencial não era esse, tanto não era que a primeira banda, Loustal, não vingou. Loustal, primeira banda de Chico, tinha o nome em homenagem ao quadrinista francês Jacques de Loustal, de quem Chico gostava muito. A banda além das influências de Chico já citadas juntava a elas o Pós-Punk. Foi mais ou menos nesse período que as coisas começaram a mudar.
Em uma mesa de bar qualquer pelas ruas de Recife, Chico conheceu um maluco com chapéu panamá, vocalista do Mundo Livre S/A e apresentador de um programa de rádio. A Mundo Livre S/A era uma banda sem expressão, carregada da influência Punk. Entre copos de cerveja e conversas acaloradas, o pensamento desses dois caras começou a converter para um horizonte muito próximo. Chico e Fred começaram a desenvolver uma amizade que geraria grandes frutos.
A revolução para Loustal e seu fim, aconteceu quando Chico conheceu o Lamento Negro, grupo afro que trabalhava com educação social. Chico jogou tudo para o alto e começou uma nova formação, aquela que seria a definitiva. As conversas com Fred 04, o cara do chapéu panamá, estavam se consolidando e o que saia dali era uma seqüência de pensamentos sobre a vida da cidade e sua cena cultural, sobre o mangue e a sua sociedade marginal, sobre homens-caranguejos. Foi daí a ignição para que Fred 04 escrevesse aquilo que se tornaria o primeiro Manifesto do Manguebeat. Chico então juntou tudo o que tinha escutado, juntou todas as suas influências; e na mesma panela, juntamente com os caranguejos ele jogou o Funk de James Brown, o Hip-Hop da Legião Hip-Hop, as influências do Pós-Punk que acompanhavam o extinto Loustal, usou tudo isso e envenenou o samba a embolado e principalmente o Maracatu. O nome da nova formação era Chico Science e Nação Zumbi.
Chico Science
Eu vou fazer uma embolada, um samba, um maracatu. Tudo bem envenenado bom pra mim e bom pra tú. Pra gente sair da lama e enfrentar os urubus.
A Cidade, Chico Science
O Manguebeat não nasceu com a pretensão de se tornar um movimento cultural, nasceu com a pretensão de transformar uma cena que se encontrava morta e obsoleta. Para isso tomaram como base aquilo que estava ali aos olhos de qualquer morador de Recife, tomaram como base o mangue. Se o mangue é o ecossistema mais rico do mundo, e Recife é uma cidade prodigiosa no que diz a riqueza cultural, é isso que queremos, é isso que propomos e é isso que reivindicamos. Queremos ela mais atuante, que não fique estagnada, que a nossa música renasça com força.
As coisas não foram fáceis, não mesmo. A nova música não era bem recebida e quando eles subiam ao palco era comum alguém da platéia gritar: Toca Led Zeppelin! A resposta da Nação a esses gritos era o maracatu que ecoava dos tambores, a contra-reposta da platéia eram as vaias. Enquanto Pernambuco gritava que aquilo era agressão a cultura local, o Sudeste dizia que era Regionalismo. Não muito difícil de entender a opinião de nenhum dos dois, na banda as guitarras eram estridentes, berravam entre o som dos tambores pedindo a atenção. Talvez isso explicasse o pensamento pernambucano, além das visíveis influências do Funk, Soul, Punk, Hip-Hop e etc. Para o Sudeste, as letras falando de Lampião, Zumbi, Josué de Castro, Recife e todo o nordeste fomentavam o pensamento do Regionalismo; paralelo a isso os tambores surravam aos ouvidos desacostumados com o Maracatu.
Quem estava certo?
Quando o Manguebeat começava a se tornar maduro uma imagem já era difundida entre o movimento e as pessoas que o acompanhavam, a imagem era a antena parabólica fincada no mangue. O recado era simples: Somos Homens-Caranguejos no meio do Mangue, no meio da Lama, mas estamos antenados no mundo. A inspiração para imagem, segundo Fred 04, veio de Stanley Kubrick e a imagem do sintético ligado a suas obras, algo do tipo Dr. Estranho. A imagem não tardaria a se tornar realidade.
Essa informação pode parecer estranha para quem já escutou falar do movimento, mas isso eu escutei do próprio Fred 04, em um debate do Centro Cultural Banco do Nordeste aqui em Fortaleza, na época estava ocorrendo o Rock Cordel, evento que ocorre todo ano. O assunto era Manguebeat e Fred era o convidado para participar do Papo XXI. Juntamente com essa informação, que antes poderia parecer improvável, veio a revelação de que Fred e Chico ainda não conheciam as obras de Josué de Castro quando o Manifesto foi escrito. Poucos dias depois eles foram apresentados a obra de Josué e ficaram impressionados com a correspondência entre os ideais do movimento e os pensamentos de Josué.
O, Josué, eu nunca vi tamanha desgraça, quanto mais miséria tem, mais urubu ameaça.
Da Lama ao Caos, Chico Science
Josué de Castro foi médico, catedrático, pesquisador, escritor, embaixador da ONU no Brasil, exilado político durante a Ditadura Militar, uma vez indicado ao Nobel de Medicina e duas vezes indicado ao Nobel da Paz. Como se diz, o homem era FODA! Se eu fosse me deter falando da vida de Josué, o FiliPêra me mandaria colocar o post em duas prestações, com a segunda pra daqui a 30 dias. Mas vou falar o suficiente pra que entendam a ligação entre Josué e o Manguebeat.
Josué de Castro
Josué de Castro nasceu em Recife no ano de 1908 e formou-se em Medicina pela Faculdade Nacional de Medicina. O grande objeto de estudo de Josué, o seu grande objeto de dissecação, foi a fome. Cuidadosamente, o médico abriu cada nervura deste objeto e mensurou cada uma das suas conseqüências e origens. A Fome, assim com letra maiúscula, foi e ainda é presente nas músicas da Nação Zumbi e do Manguebeat. Além da correspondência com tema da fome, Josué de Castro e Manguebeat se chocam com força no conto O Ciclo do Caranguejo, escrito por aquele. No conto, é narrada em prosa poética a vida de uma família que mora nos Mangues de Recife. Os homens caranguejos eram ricamente descritos na obra de Josué.
No mangue, tudo é, foi ou será caranguejo, inclusive o homem e a lama.
Josué de Castro
Aconselho à todos procurarem as obras de Josué de Castro, entre as mais importantes estão: A Geografia da Fome e Homens e Caranguejos; sendo, este último, um romance.
Era 1992 e o Sudeste já estava jogado aos pés de Chico Science e Nação Zumbi. Com a visibilidade, não demorou um estalar de dedos e uma gravadora os chamou para conversar. Em 1992, besuntado de lama, Da Lama ao Caos saía das gravadoras e fincava-se como um marco na história da música brasileira. Um disco potente, com todas as influências fervilhando, agitado e inquieto, Da Lama ao Caos não deixava os riffs das guitarras roubarem a cena sozinhos, nem a percussão soterrar as guitarras. Feito exatamente na medida e justificando o apelido de Chico, o Science, o cientista dos ritmos. Parece até absurdo, mas o disco lhe faz crer que maracatu e punk nasceram pra fazer rima. Paralelamente, o Manguebeat já estava com força e a cena almejada começava a nascer e a frutificar.
O primeiro CD de Chico Science e Nação Zumbi ganhou o mundo, foi lançado nos Estados Unidos, na Europa e até mesmo no Japão. Claro que o CD não foi simplesmente lançado, antes de sair lá fora, a banda fez varias apresentações pelo mundo, sendo a primeira delas em Nova York.
Da Lama ao Caos completava quatro anos e ja estava na hora de voltar aos estúdios; o resultado se chamou Afrociberdelia. O segundo CD era menos agressivo, carregando um tom um tanto psicodélico. O disco chegou a alcançar 5º lugar na World Music Charts Europa e teve música interpreta pelo Paralamas do Sucesso, Manguetown. As letras mantinham a mesma carga de preocupação social. Nessa época, os frutos do Manguebeat já começavam a se fazer notórios, destaque para Mestre Ambrósio e Eddie.
Era domingo. O Sentido era Recife para Olinda. Eu não sei as condições do tempo, não sei se chovia, mas creio que o carro movia-se com muita velocidade. O impacto com o poste foi impiedoso, dobrando todo o metal e causando perda irreversível. O Fiat Uno branco acolhia no fundo de suas ferragens retorcidas o corpo de um homem com três décadas de vida. Quando o corpo chegou ao hospital já estava morto. Francisco de Assis França, Chico Science, partiu em 2 de fevereiro de 1997.
Talvez seja impossível - eu acho impossível - mensurar a falta que Chico fez a Nação Zumbi. Da mesma maneira é quase impossível dizer com o que mais ele nos presentearia, eu chuto que seu terceiro CD seria algo diferente do ótimo Afrociberdelia, sua irmã em entrevistas contou que Chico vinha cuidando mais da voz e escutando muita Bossa Nova.
Chico Science foi um artista que cresceu na periferia de Recife, correndo pelos mangues e caçando caranguejos. Talvez seja por essa formação que se tornou um artista tão preocupado com a questão social, com a fome, com saneamento básico e banditismos. Chico nos ensinou que nossos artistas não precisam absorver as influências que vem de fora e dobrar-se conforme seus mandos, algo que acontece muito hoje, basta observar as inúmeras franjas saltando no Programa do Faustão e muitas vezes cantando realidades que parecem distantes do real solo brasileiro. Mais do que tudo, Science dobrou todo o estrangeirismo a sua cultura, fez debruçar-se sobre seus pés e a cultura da sua Recife, do seu nordeste e do seu país as mais distintas influências estrangeiras.
Pode caracterizar isso como um regionalismo, já que ele falou tanto de Recife e do Nordeste? Aos meus olhos se existe algum regionalismo nisso é um regionalismo a nível nacional. Chico trouxe no seu verbo uma marca forte do nordeste, isso não quer dizer, porém, que São Paulo ou Rio Grande do Sul não sofram com as dificuldades por ele cantadas. Hoje é possível encontrar as músicas de Chico espalhadas em diversos programas, e anos atrás tivemos frases de músicas suas sendo repetidas até a exaustão em refrões de músicas de artistas medíocres que (graças a Deus) acabaram. Não vou citar nomes, mas quando você escutar vai notar na hora.
Com a imprevisível e lacerante partida de Chico, a Nação Zumbi se desnorteou; nada anormal, conseguindo forças, a princípio, apenas para lançar um CD homenagem intitulado CSNZ. O disco trouxe antigas gravações e novas mixagens. Lembra do Jorge? Aquele citado há muitos parágrafos atrás, mencionado quando eu falava da Legião Hip-Hop. Chico, ainda vivo, queria dividir o peso do palco com alguém, e esse alguém era Jorge Du Peixe, que na época estava na percussão. Foi então com Jorge Du Peixe à frente da banda que a Nação Zumbi conseguiu se reerguer e lançar de maneira independente seu primeiro CD sem Chico, Rádio Samba. As composições agora passaram a ser assinadas por Jorge Du Peixe, que antes havia participado em parcerias com Science. As letras de Jorge não esquecem as referencias nordestinas e menos ainda as preocupações sociais de antes, mas vejo as composições de Du Peixe com uma dose de poesia voltada para o ser humano e sua amarguras íntimas, muitas vezes tocando na ferida mesmo, e às vezes, portando-se com um poeta universal falando de infernos e deuses.
Depois de Radio Samba vieram: Nação Zumbi, Futura, Propagando (DVD) e Bossa Nostra.
A sonoridade pós-Chico também se modificou um pouco, com uma pressão mais forte das guitarras e com uma percussão que parece uma parede de pancadas. Falando assim parece uma barulheira desgovernada, mas não! Na Nação Zumbi, guitarras e tambores de maracatu existem no mesmo universo, e em plena harmonia. Nos shows, as músicas da época de Chico continuam no repertório, para que sua memória se mantenha viva.
8 Comentaram...
Lá vai uma dica de boas bandas de Manguebeat:
Ôxe:
http://tolkienmetal.blogspot.com/2009/11/banda-oxe.html
Totonho:
http://tolkienmetal.blogspot.com/2010/03/totonho-os-cabra-2001.html
Isso aê caralho!! algo que eu nunca esperava ver aqui no NSN, muito foda
Cara, quase sem paralavras pra dizer o quanto fiquei feliz de ver um post desse "naipe" aqui no NSN. Talvez por ser recifense, talvez por ter crescido escutado Chico, Fred, Siba e Silvério Pessoa.
Chico Science foi um verdadeiro marco na história musical pernambucana e brasileira.Foi o alicerce para o grande movimento Mangue e continua sendo referência para quem veio depois. A introdução da alfaia proveniente do Maracatu Urbano, a figura do Caboclo de Lança do Maracatu Rural,com seus enfeites e chocalhos, a força da embolada e do coco de roda, trouxe uma nova vida ao cenário artístico do estado.
Uma grande revolução que abriu portas para o Mundo Livre SA, Mestre Ambrósio,Cascabulho e o finado Cordel do Fogo Encantado.
Foi admirado por artistas consagrados como Gilberto Gil e Cássia Éller, fazendo parcerias e sendo lembrado em suas obras.
Chorão do Charlie Brown Jr. quando fazia show em Recife sempre enaltecia o Chico, agradecendo a força que o mesmo lhe deu no início de carreira.
Chico era um cara simples, sem frescura, que reuniu seus amigos para cantar a sua cidade e denunciar a destruição do meio ambiente e as injustiças sociais.
Infelizmente só ganhou o merecido valor após a sua morte.
Sua música continua atemporal, dançante e muita pancada. Simplesmente não dá pra ficar parado.
Escuto sempre Chico Science e a cada dia ainda consigo se surpreendido com sua sonoridade.
Excelente matéria. Finalmente o NSN lembrou de um musico que renovou o cenário musical brasileiro (ou pelo menos tentou). Chico Science faz muita falta atualmente, hoje em dia reina a mediocridade e a pouca criatividade. Com bandinhas emos que me dão nojo. Um sujeito como ele eia fazer e acontecer.
Sensacional! Preencheu uma lacuna no NSN!
Manguebeat mudou minha vida. Me encaminhou para o Reggae. (Faltou mencionar a influência do Reggae e do dub no Manguebeat e em Chico Science).
Sensacional! Parabéns.
Abração
Gabi Dread
Parabéns pela matéria cara, lê-la renovou meu repertório de preferencias musicais... baixei o futura aqui, e vou conhecer essa cultura aos poucos
so acheiestranho dizer que recife era fechado pra coisas diferentes,a capital cultural do nordeste, sei não...
Hoje ela é capital cultural.
Mas antes (Segundo meu avô) ela era um...um... um mangue mesmo.
Ele não sabia que recife era a 4º pior cidade naquela epoca, mas quando soube me disse que fazia jus á classificação.
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