Por Dolhpin
Antes de qualquer coisa...
Meu artigo de hoje começará diferente, com um tom meio de desabafo e tornando vocês leitores, meus confidentes. A questão é que depois da experiência com Hipátia e Safo nos posts anteriores, onde fui rasa ao descrever a Grécia na Antiguidade o que me levou a cometer alguns equívocos, prontamente ajustados em meus comentários. Porém, não me satisfazendo de forma alguma, parei para reavaliar a minha abordagem para esta coluna.
Falar de História é falar de vida, não só dos que já se foram, mas as nossas e certamente as dos que ainda virão. Nós respiramos História, cada segundo de oxigênio inspirado é um ponto que estamos construindo dentro dela, seja em nossa própria Linha do Tempo, ou em uma escala muito maior. O que fazemos hoje é História! Talvez ela fique apenas no âmbito familiar e torne-se motivo de causos para nossos filhos e netos, mas também possa ser que dentre nós esteja o próximo Einstein, não importa, no que diz respeito a História, todos, independente do papel social exercido, somos indivíduos transformadores.
Quando me propus a escrever o Alma Mater, no intuito de trazer a tona a vida dessas incríveis e injustiçadas mulheres do passado, eu sabia que não conseguiria dar o tom leve e gostoso que encontramos sempre nos textos deliciosos que os rapazes do NSN nos presenteiam diariamente. E mesmo os artigos fortes, que vêm se tornando marca do blog, como a coluna Glaspost do Voz do Além, possuem aquela característica própria das mentes jovens que enxergam possibilidades em meio ao caos.
Entendam, não quero dizer com isso que sou uma tiazona pessimista... ao contrário, me vejo como uma tiazona que vê as mesmas possibilidades, e é justamente por isso que me sinto tão a vontade aqui! Mas não dá para deixar de lado uma característica muito minha que é a de sempre levar fatos históricos para um âmbito bem pessoal. Posso dizer a vocês que quase nunca consigo ser apenas uma observadora imparcial do passado. Caramba! É História diacho! Se eu for imparcial, fria como muitos acadêmicos são, não terei como dizer com segurança que pessoa eu sou, já que iria ignorar toda uma carga de acontecimentos que delinearam o mundo em que vivo hoje!
Portanto, peço primeiro que me perdoem por não ter dado a vocês nos dois primeiros artigos uma visão mais ampla da Grécia Antiga e prometo que irei em breve remediar isso. Também peço que relevem o meu tom formal e muito didático quando escrevo, tenho certeza que uma aula de História presencial seria muito mais divertida a exemplo de alguns professores loucos que tive o prazer de conhecer no passado e que muito me influenciaram no despertar ao amor a essa disciplina tão mal vista. E por último convido-os a apreciar e principalmente a refletir a história de mais uma das Grandes Mulheres do Passado...
Boudicca a Rainha Guerreira
"Boadicéia era alta, terrível de olhar e abençoada com uma voz poderosa. Uma cascata de cabelos vermelhos alcançava seus joelhos; usava um colar dourado composto de ornamentos, uma veste multi-colorida e sobre esta um casaco grosso preso por um broche. Carregava uma lança comprida para assustar todos os que deitassem-lhe os olhos."
Dio Cássio
Falar de Boudicca (também Boudica, Boadicéia, Boadicea, Buduica e Bonduca) certamente me deixa um bocado dividida, pois diz respeito a dois povos da Antiguidade que muito admiro. Se por um lado eu afirmo com paixão que minha Alma é Romana, por outro não consigo deixar de imaginar que por conta da minha descendência francesa, provavelmente tenho sangue gaulês correndo nas veias. Junte a tudo isso a minha fervorosa defesa a causa feminista e lá estou eu roendo as unhas pensando como ser didática e ao mesmo tempo emocional para escrever esse artigo! Pois então tentarei ser meio termo para não cansar vocês mais do que já devem estar cansados depois do meu discurso acima!
Há alguns anos atrás, uma amiga fazia uma piadinha séria para ilustrar o processo de romanização aos povos conquistados. Ela dizia que quando um governador romano chegava a Província conquistada, reunia as pessoas e passava a discursar o quanto era vantajoso para eles, os bárbaros, fazerem parte do Império. Era algo mais ou menos assim:
- Viemos aqui para trazer para vocês a pax romana, os aquedutos, as estradas...
Alguém na multidão levantava a mão timidamente pedindo para ser ouvido e com o devido consentimento dizia:
- Ãh, mas não precisamos disso, estamos satisfeitos com o que temos...
E o governador então ordenava aos soldados, apontando para quem havia falado:
- Cinquenta chibatas!
E voltava-se para a multidão e continua:
- Viemos aqui para trazer a pax romana, os aquedutos, as estradas...
Como eu disse acima, a piadinha é para ilustrar como os romanos viam os povos conquistados, e como muitos historiadores bem observam, é uma forma de demonstrar a separação étnica onde fica evidente a divisão do “Nós” e o “Eles”. Adentrar no processo de expansão do Império Romano e a política de romanizar os povos conquistados me levaria a escrever muito mais do que um artigo e certamente essa coluna não é a mais apropriada. Deixo então para uma proposta mais oportuna. Cabe aqui aproveitar o assunto como pano de fundo para contar a vida de uma das Grandes Mulheres da História, Boudicca, rainha dos Iceni, tribo celta da Britânia e que foi responsável por uma das maiores revoltas contra o Império.
Falar de Boudicca é falar da conquista da Britânia (região que hoje corresponde a Inglaterra e a Escócia), pelos romanos e para entender seu o papel na História faz-se necessário explicar a situação dessa Província em sua época.
Em 43 d.C. o Imperador Cláudio conquistou o território de reduto celta conhecido como Britânia, essa não fora a primeira incursão romana, quase um século antes Júlio César já havia aportado na ilha após a conquista da Gália, conseguindo obter bons resultados levando algumas tribos celtas a tornarem-se reinos clientes, entre essas tribos encontrava-se a Iceni. Quando Cláudio expandiu a conquista do território subpujando as tribos celtas rebeldes, os Iceni gozavam de certas regalias devido a sua posição pró-Roma, o que incluía a continuar a cunhar suas próprias moedas, ficando acordado que pagariam tributos e forneceriam suprimentos para os soldados romanos.
Porém, em 59 ou 60 d.C. o rei Iceni Prasutargo morre, e como não tinha filhos homens, deixa o reino sobre a autoridade de sua esposa Boudicca e sua herança as suas duas filhas, tendo o cuidado de separar o valor correspondente aos tributos romanos do restante dos bens deixados, provavelmente pensando nos dotes para os futuros esposos destas. Como Roma não reconhecia a linha de sucessão dinástica através das mulheres, a morte de Prasutargo é entendida como o fim do tratado e o Imperador Nero ordena que o território seja anexado ao restante da Província.
As terras conquistadas foram divididas, e como a lei romana considerava ilegal dar bens pessoais para outros sem o consentimento do Imperador, esposa e filhas perdem todos os seus recursos. Sem ter como pagar os tributos em sua regência, Boudicca e suas filhas são pegas para servir de exemplo de como o Império tratava os seus subordinados.
Antes de adentrar nos acontecimentos que levaram Boudicca a liderar um levante contra a ocupação romana faz-se necessário descrever alguns fatos pertinentes que foram propícios para toda a situação posterior.
A Britânia como reduto celta era formada por diversas tribos e é fato que não eram coesas, havendo desde antes da chegada dos romanos, disputas territoriais. Após Júlio César obter aliança com algumas tribos como já dito acima, o Imperador Cláudio em sua conquista obteve segundo inscrições em seu Arco do Triunfo a rendição voluntária de onze tribos que tornaram-se reinos clientes. Todavia a conquista romana não foi homogênea havendo tribos que nunca se renderam à Roma e conseguinte mantinham pequenas rebeliões.
Em paralelo aos acontecimentos em território Iceni o governador da Província, Suetônio Paulino estava em batalha por ordens de Nero contra o que era considerado até então o último reduto Druida na ilha de Mona (atual Anglesey). Em Camulodunum (atual Colchester), a maior cidade da Britânia e capital da tribo dos Trinovantes, pequenas rebeliões ocorriam devido ao fato de estarem descontentes com os maus tratos, taxas muito altas e as confiscações de terras. Em resumo, a Britânia seguindo o exemplo da Gália no tempo de Júlio César (a resistência gaulesa liderada por Vercingetorix) estava em ebulição e seguindo a tradição romana de pegar bodes expiatórios para dar o exemplo do que acontecia aos que ousavam desafiar o poder do Império, encontraram na situação de Boudicca a oportunidade de demonstrar o tratamento destinado aos opositores.
Em 60 ou 61 d. C., soldados romanos estacionados próximos a tribo Iceni invadem o território, assassinam nobres, açoitam Boudicca e muitos deles estupram suas filhas na sua frente, estava enfim sacramentado o fato histórico que ficou conhecido como A Revolta de Boudicca.
Em sua ira essa grande rainha conseguiu o que apenas Vercingetorix na Gália havia conseguido quase um século antes, unir tribos celtas. Sob suas ordens os celtas caíram sobre os romanos e a todos que fossem pró-Roma. Acredita-se que o exército de Boudicca era composto por mais de 100.000 pessoas e Tácito afirma que mais de 70.000 pereceram nas mãos dos rebeldes. Esse levante resultou na destruição total de três cidades: Camulodunum, Londinium (atual Londres) e de Verulamium (atual St. Alban) todas queimadas sem restar uma casa em pé.
Após a conquista desta última, houve um confronto entre as forças de Boudicca e as legiões romanas sob o comando de Suetônio. A grande rainha é descrita usando sua tartan (tecido xadrez típico) e completamente armada, segundo Tácito, “numa aparência quase aterrorizante”. Quem assistiu o filme Coração Valente, que conta a história do escocês William Wallace, vai recordar que na batalha final, ele, assim como seus homens pintam o rosto e o corpo de azul, isso deve-se a tradição celta que era mais comum entre os Pictos da Escócia. Na última batalha de Boudicca, seu exército seguiu a tradição pintando seus corpos de azul, muitos deles nus, portanto lanças e espadas enquanto brandiam e gritavam ao som de tambores e cornetas.
A batalha de Watling Street (provável local, segundo muitos historiadores) foi derradeira para abafar o movimento contrário a Roma. Apesar de seu contingente numeroso, o exército de Boudicca desconhecia totalmente as táticas de guerra dos romanos e não resistiu perante a estratégia de Suetônio. As legiões romanas dizimaram em torno de 80.000 bretões entre homens, mulheres e crianças e até mesmo animais, o que era uma prática habitual ao esmagar uma rebelião.
A tradição diz que Boudicca sobreviveu a batalha para retornar a sua casa e, junto com suas filhas, se envenenaram, pois seguramente se fossem capturadas jamais teriam clemencia por parte do Imperador e certamente seriam ainda mais barbarizadas até serem executadas.
A história empurrou para seus calabouços a imagem dessa Grande Mulher que fez valer seu poder e que foi tão respeitada pelos seus. Sua memória foi resgatada no século XVI pela rainha Elizabeth I que interessada em promover o conceito da rainha guerreira nobre, transformou Boudicca em ícone histórico.
Abaixo encontra-se o discurso de Boudicca ao seu exército antes da última batalha, o texto é de autoria do historiador romano Tácito em sua obra Annales. Lembrando que o autor pertencia ao lado conquistador e portanto sua visão não é de forma alguma imparcial. As palavras, supostamente proferidas por Boudicca, refletem principalmente a idéia de romanização e conseguinte separando bretões e romanos na divisão étnica do “Nós” e o “Eles”.
“Essa não é a primeira vez em que os Bretões foram liderados por uma mulher. Porém agora ela não veio gabar o orgulho de uma longa linhagem de ancestralidade, nem mesmo para recuperar seu reino e a riqueza saqueada de sua família. Ela tomou o campo, como os miseráveis entre eles, para fazer valer a causa da liberdade pública, e para buscar vingança por seu corpo costurado por vergonhosas faixas, e suas duas filhas abominavelmente arrebatadas.
Para o orgulho e arrogância dos romanos nada é sagrado; tudo é sujeito à violação; os velhos suportam o açoite, e as virgens são defloradas. Mas os deuses vingadores estão agora à mão. Uma legião romana atreveu-se a encarar os bretões guerreiros: com suas vidas eles pagaram por sua impetuosidade; aqueles que sobreviveram à matança daquele dia adoeceram escondidos atrás de suas trincheiras, meditando em nada além de como se salvarem em vergonhosa fuga.
Da zoeira da preparação, e dos gritos do exército bretão, os romanos, mesmo agora, encolhem-se aterrorizados. Qual será o caso deles quando o ataque começar? Olhem ao seu redor e vejam seu contingente. Contemplem o magnífico espetáculo dos espíritos da guerra, e levem em consideração as razões pelas quais nós erguemos a espada da vingança. Neste local nós devemos também conquistar, ou morrer com glória. Não há alternativa. Embora uma mulher, meu propósito está fixo; os homens, se agradá-los, poderão sobreviver com infâmia, ou viver em escravidão.”
8 Comentaram...
Dolphin,mas uma vez um brilahnte artigo!
Como amante da História estou adorando conhecer mais sobre essas Grandes Mulheres do passado.
Eu qro saber se vc só irá falar apenas do passado ou se vai fazer uma linha do tempo até chegar às heroinas mais recentes.Seria ótimo!!!!
Parabéns!!
Oi Joelma!
Obrigada pelas palavras e sim, irei fazer uma linha do tempo que chegue até os dias de hoje! Aguarde porque ainda vem muitas mulheres incríveis por ai!
Beijos!
Por favor, não deixem de falar da Nausicaä!
Isso tá muito legal, abração!
Oi Anônimo!
A ideia da Nausicaa está anotada! Mas ficará para algo especial já que estamos falando de uma personagem da mitologia grega e não alguém que existiu de verdade! Se tiver mais sugestões fique a vontade para falar!
E obrigada!
Pra quem quer uma trilha sonora, é linda a música de Enya - Boadicea
http://www.youtube.com/watch?v=kEzpfpaNJfY
lindo post,amei.
é incrível ver a força das mulheres,pena que nem sempre têm finais felizes.
Nunca procurei saber sobre Boadiceia,só conhecia o nome por causa da música da Enya,mas amei sua história.
Li também os outros posts,e isso me instigou a procurar a linha do tempo das mulheres na história.Deixo minha sugestão,a história de Tomoe Gozen,guerreira samurai.
ah,e adorei conhecer você,mesmo que seja através dos posts^^
vi num outro post que você morou em guarulhos...morou onde?
bjoooo
ansiosa pelo proximo post
^^
PARABÉNS pelo post.
Boudicea era incrivel....
Como entusiasta da cultura celta, pesquisei sobre a incrível Boudica e achei esse artigo. Gostei principalmente pois tem mais informações do que a maioria de posts em blogs, que geralmente são míseros "ctrl+c/ctrl+v". Agora vou procurar mesmo textos acadêmicos e, se possível, achar alguns livros sobre ela, que foi tão forte e guerreira! A história dela chega a me arrepiar. Ela lutou por algo que ainda lutamos hoje em dia e apesar de tudo o que sofreu, ainda conseguiu levantar uma grande revolta que trouxe uma super dor de cabeça à Roma. Sua história é triste, mas extremamente forte e demonstra que não devemos nos deixar abater.
Lerei seus outros artigos, pois adorei esse.
Abraços
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