Se você pegar o encarte de Supergods, o primeiro livro do escritor Grant Morrison, vai encontrar a seguinte citação de Stan Lee: “Grant Morrison is one of the great comic writers of all time. I wish i didn’t have to compete with someone as good as him” se Jack Kirby estivesse vivo, provavelmente diria: “cai dentro!”, mas a verdade é que sem Lee ou Kirby, não existiria Morrison, ao menos não da forma como conhecemos.
Supergods é a primeira empreitada do escocês careca na literatura convencional, neste livro, o mesmo busca desenvolver – sem pretensões acadêmicas – suas visões profissionais, ideológicas e espirituais sobre o meio, analisando o espírito de cada época assim como desenvolvendo um paralelo biográfico.
O livro começa no início do século passado, no auge dos males daquela época, a Grande Depressão, a Bomba e a sombra de Adolf Hitler pairando sobre a Europa e assim Morrison toma seu tempo para explicar, de forma empolgada e eletrizante, o advento do Super-homem e o início da Era de Ouro das HQs.
Logo de cara, podemos detectar a principal falha do livro, a constante perda de fôlego que Morrison exibe em sua dissertativa, capítulos como “The Sun God and The Dark Knight” ou “Superpop” apresentam não apenas um nível alto de argumento, como também humor e atmosfera. Mas em compensação, em demais outros, o escocês patina, como se entrasse em um modo automático, preenchendo lacunas até chegar em um ponto mais pertinente.
É espantosa a intimidade do autor com o meio, conhecendo a essência criativa por trás das principais obras e as motivações dos escritores e desenhistas da época, Morrison inclusive, trata com carinho períodos “negros” da indústria, como a Era de Prata, enfatizando o esforço criativo da época em contornar ou criticar o Comics Code Authority.
Interessante analisar como Morrison “distribui” a culpa dos eventos que levaram à Era de Prata, não apenas evidenciando de forma sardônica certos sentimentos enrustidos de Frederic Wertham, autor do controverso Sedução dos Inocentes, onde argumenta que a degeneração moral da juventude norte-americana se encontra, em partes, nas HQs. Assim como a indústria de HQs na época, incapaz de realizar uma contingência de reação perante a opinião pública e o próprio declínio criativo dos artistas da época.
Entre os capítulos mais louváveis dessa fase, é “Shamans of Madison Avenue” e o surgimento de New Gods por Jack Kirby e o início da “meta-espiritualidade” nas HQs e “Brighest Day, Blackest Night” onde Dennis O’Neil em Green Lantern/Green Arrow evidenciou as inquietações sociais americanas e mostrou o quanto isto era contraditório à proposta do CCA. Para os leitores atuais, é engraçado perceber como Morrison evita comentar sobre a Marvel Comics, como se o autor – por uma série de razões até mesmo editoriais – se sentisse desconfortável para comentar sobre a Marvel Comics.
Claro, o livro não deixa de dar mérito pra importância de títulos como Fantastic Four, Spiderman e Captain America, mas como o próprio Morrison afirma em suas notas biográficas, ele achava que os títulos da Marvel tinham uma certa dose de realidade que ele considerava intragável para sua infância.
E o mesmo reconhece que foi em Stan Lee, que surgiram diversas das suas inspirações, como a idéia de trabalhar metalinguagens em trabalhos como Animal Man e Doom Patrol na DC/Vertigo.
A parte bigráfica é um show a parte, e em diversos momentos considerei mais atraente que a própria proposta do livro, desde sua infância pacata em Glasgow, o crescente tédio na adolescência, o divórcio de seus pais e sua inevitável empreitada no mercado editorial, assim como o início da fama, com Zenith na 2000 AD, seu contato com as drogas, o vegetarianismo, as experiências lisérgicas e sua primeira crise existencial, há quase duas décadas atrás.
Claro que o livro reflete os maneirismos criativos de Morrison, a relação entre espiritualidade e cultura pop é amplamente explorada, exemplos como o dualismo Apolo/Dionísio entre Superman/Batman, a questão de símbolos e palavras mágicas e ai o mesmo argumenta que Captain Marvel, ao pronunciar “SHAZAM”, se tornou o primeiro grande xamã da ficção moderna.
A verdade é que, tirando suas discussões sobre a Era de Ouro e de Prata, se o leitor conhece a obra recente de Morrison, então pouco sobra do livro, em muito, o livro é considerado um manifesto em prol da edificação do arquétipo super-heróico. Na terceira parte do livro, Morrison prefere chamar a “Era Moderna”, iniciada por Frank Miller e Alan Moore como a “Era das Trevas”, onde se deu início a uma obsessão pelo “realismo” nas histórias, trazendo o vício insalubre que ficou conhecido pela crítica como “grim n’ gritty”
Morrison condena o “realismo” por duas instâncias: primeiro, pois ele é fruto de uma mente adulta e limitada pelas vicissitudes do cotidiano adulto, e que, por fim, o mesmo não passa de um exagero de violência e repreensão sexual que visa não transformar as histórias em algo real, mas sim “desmoralizá-las”.
E ai o escritor reforça sua crítica em cima de Watchmen, onde de forma ambígua, elogia o esforço criativo de Alan Moore em talhar sua história em uma “perfeita simetria”, mas condena a obsessão do barbudo com suas personagens, deixando bem claro que “realismo” não é sinônimo para “fatalismo”, “humanizar” personagens não é o mesmo que “humilhar”.
Alguns fóruns acusaram que o livro, levando em conta a recente reformulação do Universo DC, se tornou um golpe publicitário, é importante frisar que Morrison tem dado uma série de entrevistas sobre o futuro criativo da editora, roteirizando três dos personagens mais importantes da editora, a famosa “trindade” composta por Superman, Wonder Woman e Batman.
Em diversos momentos, Morrison argumenta a inspiração popular, quase socialista do Superman de 1938, assim como os fetiches BDSM de William Moulton Marston, o escritor original de Wonder Woman, idéias que ele afirmou que vai retomar e por em prática em trabalhos futuros.
Não é mentira que a ascensão do escocês tem causado incomodo no público e na mídia, vamos ser sinceros quanto a um ponto, Grant Morrison é um nerd que vive seus quinze minutos de fama, com livro e documentário, onde muitos optariam por sofrer uma “síndrome do undeground”, Morrison busca através dessa visibilidade dar uma projeção maior a seus projetos e idéias.
Supergods é o início do que pode ser o “próximo passo” do mercado de HQs, da mesma forma que Kirby, Lee, O’Neil, Moore, McFarlane e tantos outros contribuíram com o futuro do meio, só o tempo poderá nos dizer sobre o êxito dessa empreitada. Ficam aqui meus votos para o fim dos anti-heróis carrancudos e a volta das capas esvoaçantes e heróis sorridentes, assim como no passado, esses são tempos em que mais do que nunca, precisamos deles novamente.
5 Comentaram...
Quando você diz 'bibliográfica' acho que é 'biográfica' mesmo, né? Fora isso, boa resenha.
ops! vacilei mesmo! valeu por notificar!
Eu sou devoto confesso de Alan Moore e confesso que tô me coçando pra ver o que o Morrison diz do barbudão.
Mas, levando em conta o que a resenha já revela, vou arriscar logo uma opinião.
O que o Moore tentou fazer em Watchmen foi dar mais profundidade psicológica aos super-heróis, fazer uma história que falasse da complexidade das relações de poder, do mal estar social da época, entre várias outras coisas. O problema é que o LEGADO de Watchmen acabou sendo ruim, porque poucos roteiristas entenderam a complexidade de Watchmen e a única influência que tiraram da série, foi o clima violento, sombrio e decadente, esquecendo-se do experimentalismo técnico e da superposição de temas e pontos de vista. O próprio Alan Moore lamenta em entrevistas que o efeito de Watchmen tenha sido esse, pois a intenção dele era justamente fomentar histórias mais inteligentes, do tipo que o Gaiman ou o Morrison conseguem fazer.
Oi Lucas, não quero entregar muito do livro, mas vamos explorar alguns pontos.
Morrison não ataca Watchmen, ao menos não de uma forma injusta e impetuosa, ele antes de concluir sobre a obra, dedica meio capítulo do livro a uma profunda análise do trabalho de Moore, inclusive ressaltando a primeira fase do legado de Watchmen, o "evolua ou morra".
A complexidade do trabalho não é deixada de lado, pelo contrário, ele analisa o quão intricado é a obra de Moore, inclusive sobre a simetria hermética em que ela é construída, o início e o fim, com o diário de Rorschach.
Em um ponto, ele defende Moore em relação a adaptação cinematográfica, alegando que se Zack Snyder capturou alguma coisa, foi a essência da arte de Gibbons.
No capítulo seguinte, entitulado "Image vs Substance", ele fala da ressaca moral e resposta do mercado editorial americano contra aquilo que Morrison define como "Art School Comics" (ou a Invasão Britânica) e o surgimento da IMAGE Comics e a relação do seu portifólio com o público pós-Watchmen e TDKR.
Bom, espero que tenha esclarecido essa parte!
Esclareceu sim cara, valeu!
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