Não existe um gênero com maior número de fãs do que o Terror. Independente da mídia, seja em quadrinhos, filmes ou livros, ele sempre chama a atenção. Em parte por ser o mais original de todos, embora preso por muitas camadas de falta de imaginação e criatividade. Em qual outro gênero você vê uma gosma verde e assassina? Ou um cientista se transmutando em mosca? Ou ainda a morte vindo levar a alma até dos ricos? Sempre há pessoas que procuram novos caminhos ou revitalizam antigos para chegar ao mesmo resultado: causar o tipo de sentimento no público que só o terror é capaz de causar. Medo, terror, desespero, noção de perda, paranóia. É como uma montanha-russa. Ameaçadora, mas você sobe nela assim mesmo e se diverte com isso.
O terror também criou gênios que marcaram as artes. George Romero, Zé do Caixão (não perco um filme dele!), H. P. Lovecraft, Edgar Allan Poe, Shigeru Mizuki e mais atualmente na literatura, Stephen King. King já escreveu livros que se tornaram clássicos instantâneos do suspense e arregimentou milhões de leitores em todo o mundo. Com mais de 60 livros lançados e adaptações cinematográficas do naipe de Iluminado e Um Sonho de Liberdade, ele é considerado o rei do terror moderno. Esse sucesso todo não veio à toa, claro, mesmo que alguns insistam em afirmar o contrário. Seus melhores romances são muito superiores à maioria dos filmes e quadrinhos de terror que vemos por aí.
Mas nem sempre foi assim. Stephen King era sempre rejeitado pelas editoras e só conseguia sustentar a família com a venda de seus contos para revistas. Certa vez, baseado em lembranças de duas garotas que conheceu ainda na adolescência e em um artigo, começou uma nova história. Mas ela ia ficar grande demais para um conto e ele não podia se dar ao luxo de perder tempo escrevendo um romance. Tinha que pagar as contas! Tacou o projeto no lixo. Sua esposa Tabitha pegou as páginas e o convenceu a terminar o que acabaria sendo seu primeiro romance e um das mais clássicas novelas de horror dos últimos 50 anos.
O que poderia acontecer realmente se alguém desenvolvesse poderes telecinéticos poderosos? Stephen King mostra uma possibilidade que poucos imaginaram. Carrie é uma garota que cresceu sofrendo abusos dos colegas de escola e repressão pelo fanatismo religioso de sua mãe. Carrie não possui amigos, na hierarquia dos colégios americanos é o que costuma ser chamado de loser. Um dia qualquer, enquanto toma banho no vestiário da escola, uma coisa estranha começa a acontecer com ela. Sangrava e sangrava sem parar. Uma hemorragia? Onde é que foi que se machucou? Ao seu redor dezenas de garotas berravam e jogavam absorventes em cima dela. Estava menstruada, lhe explicaram. Pela primeira vez. Não fazia idéia do que era aquilo. O início de sua puberdade só a fazê-la despertar seu poder, há muito adormecido.
“Carrie dobrou o vestido e o pendurou no braço. Olhou para a máquina de costura. Na mesma hora o pedal mexeu. A agulha começou a subir e a descer, com seu brilho de aço faiscante. O carretel zumbia e pulava. A roda lateral girava.
Mamãe levantou a cabeça, os olhos arregalados.”
Quando chega a sua casa é obrigada pela mãe a ficar presa em um armário por horas para clamar o perdão de Deus por ter caído em tentação e sido amaldiçoada com a punição do Sangue. Não adiantava tentar explicar que a menstruação é comum nas mulheres, a mãe não acreditava nisso. Podia sentir que poderia arrancar aquela porta na hora que quisesse. A cada dia que passava conseguia levitar móveis cada vez mais pesados.
Sue Snell, entre todas as garotas presentes no incidente da menstruação de Carrie, era a única que sentiu remorso depois. Como se não se reconhecesse mais. Afinal, Carrie era uma pessoa como qualquer outra e tinha seus próprios sentimentos. Se ainda fosse apenas essa vez. Mas foi uma vida inteira! Para reparar seu erro e se sentir melhor convence o namorado Tommy a levá-la para o baile da Primavera. Sabia pelo jeito como ela o olhava que estava vidrada por ele.
Desde o começo do livro sabemos que algo terrível vai acontecer no baile e poucos serão os sobreviventes. Stephen King, sabiamente, não fez questão nenhuma de esconder isso. A questão é saber o quê e como vai acontecer. Claro que quem viu o filme de 1976 ou a versão de 2003 vai perder o ineditismo do final, mas não o seu impacto. Mesmo sabendo exatamente o que vai acontecer não se consegue desgrudar do livro. O final ainda mantém sua força e é MUITO superior ao dos filmes. Como não se sentir justiçado lendo uma das mais catárticas vinganças da literatura? A cada sofrimento de Carrie nos sensibilizamos mais e mais, até que chega o dia da libertação. Stephen King chega a contar o acontecimento duas vezes e ainda fazer os leitores pedirem mais e mais daquilo.
“As portas se abriram.
E Carrie entrou.”
Carrie, a Estranha nunca seria publicado se fosse escrito hoje. Não após o incidente em Columbine. Talvez até publicasse, mas uma das maiores qualidades do livro teria que ser alterada: o seu final.
“... agora o conto de fadas era só perversidade e maldade. Nesse, ela comeria uma maçã envenenada, seria atacada por trolls e comida por tigres.
Estavam rindo dela de novo.
E de repente veio. A terrível conscientização da gravidade do que fizeram invadiu-a, e um grito mudo e pavoroso
(estão me OLHANDO)
tentou sair de dentro dela. Ela cobriu o rosto com as mãos para escondê-lo.”
A estréia de Stephen King é inovadora em dois aspectos. Primeiro, por sua estrutura documental, científica. A narrativa é composta de artigos científicos, trechos de livros fictícios, cartas, notícias de jornal e estudos sobre o caso Carrie White. Tudo mesclado a pequenos flashbacks da vida da protagonista. A catástrofe é amplamente discutida por estudiosos e põe por terra até as Leis de Newton. A telecinese passa a ser amplamente pesquisada e levanta questões morais e sociais. O que fazer com uma pessoa que pode erguer carros, provocar incêndios e destruir cidades sem erguer as mãos? Carrie não é apenas sobre sua vida da personagem homônima. É sobre as conseqüências dela. Ao contrário do que você pode estar pensando, isso não deixa o livro chato. Só faz dar uma dimensão ainda mais realista ao romance.
“Primeiro viera o fluxo de sangue e a fantasias imundas que o Diabo manda junto com isso. Depois o poder infernal que o Diabo lhe dera. Veio no tempo do sangue e dos pelos do corpo. Ah, ela conhecia o poder do Diabo. Sua avó mesma tinha esse poder. Conseguia acender a lareira sem sair da cadeira de balanço ao lado da janela. Fazia seus olhos
(não permitirás que uma bruxa fique viva)
brilharem como olhos de bruxa.”
Stephen King chega a brincar com esse estilo inserindo ele mesmo na história, como um ex-professor de Carrie dando depoimento sobre a garota. Uma participação ínfima, e que poucos percebem porque ele usa o Edwin em vez do Stephen.
O segundo trunfo é raro. Uma história de horror (apesar de alguns leitores insistirem que Carrie não tem nada a ver com terror, só porque também envereda pelo drama) que dispensa monstros, casas mal-assombradas e maníacos de machados. Os monstros aqui são as próprias pessoas, capazes de massacrar uma garota inocente que nunca fez mal a ninguém. É como viver em um pesadelo, sem esperanças de acordar.
Mas Carrie não é um livro perfeito. A inexperiência de King peca em alguns momentos, embora o trabalho cuidadoso em cima do romance tenha minimizado isso. Algumas passagens podem confundir os mais desatentos e o artifício interessante de mostrar os pensamentos dos personagens como de fato são, sem vírgulas ou qualquer outro sinal de pontuação é bem complicado de se fazer entender às vezes. Mas por aqui já se dava para ver elementos que marcariam os futuros romances do Mestre do Horror. O final não poderia ser outro. Poucas vezes se vê um final tão bem fechado e ao mesmo tempo tão aberto às mais diversas interpretações.
Carrie, a Estranha é leitura obrigatório para quem é fã de Stephen King ou para quem curte um bom horror. Mas se você nunca foi fã do gênero está aí a oportunidade de descobrir que o terror sempre é mais do que aparenta ser.
Autor: Stephen King
Páginas: 296
Nota: 9
9 Comentaram...
Em tempos de buylling, "Carrie" é uma história atual.
Comecei lendo O Iluminado, e se antes já era fã de Stephen King por conta das adaptações cinematográficas dos seus livros, imagine depois de terminar O Iluminado!
Mas depois que li A Dança da Morte, meu respeito e admiração cresceram imensamente. Atrevo-me a dizer até que é um dos melhores romances do Mestre King (eu realmente passei a chamá-lo assim depois que li esse livro), mesmo não tendo lido muitos livros dele.
Tá, eu quero ler Carrie agora -_-"
Excelente post!!
^^/
Li apenas O Iluminado, o qual guardo grande carinho tanto pela sua genialidade quando pelo meu gosto pelo gênero. Ah, o filme, perfeito.
Aí um dia assisti o filme Carrie. Estava diante de dois exímios talentos: King na literatura e De Pelma no cinema.
Lendo o post, quero ler o livro. Obrigado pela indicação.
De Palma, adaptou como poucos a obra de King. Aliás, junto com “Carrie” existem poucos que foram adaptados com qualidade.
Primeiramente, gostaria de agradecê-lo, Murilo. Estava eu entediado com o feriado pronlogado, passando o tempo lendo feeds no iPad e foi então que vi este post. Nem tive saco para lê-lo, mas vi que era sobre o livro, pulei direto para o último parágrafo e vi a nota, 9, bem, parecia bom, né? Como eu conhecia King apenas pelos filmes, vi que seria a oportunidade perfeita para começar a ler.
Dois minutos depois eu já estava nas primeiras linhas de Carrie, no iBooks, horas se passaram e eu não conseguia parar de ler, fazia tempo que sentia tal entusiasmo. Acabei de ler agora, uma palavra: impressionante. A narrativa, o modo de construção, o fato da tragédia no baile ser apenas um detalhe, indrível. Li o post como se estivesse lendo mais um artigo em Carrie e agora tenho vontade de ler mais desse gênero na qual estou cada vez mais interessado. Fico feliz por ter começado pelo livro e quanto ao filme estou programando para assistir amanhã.
Enfim, obrigado por ter escrito este post, como disse, faz tempo que sentia tão interessado por um gênero de leitura. Acompanho o NSN há tempos e Carrie foi mais um dos muitos livros que li com indicações daqui e esta, sem dúvidas, foi a melhor!
@Gustavo Muraro
Realmente recomendo que se aprofunde mais no horror. Carrie é muito, muito bom, mas Stephen King tem outros livros ainda melhores, como Iluminado, A Hora do Vampiro, A Coisa e Christine. Indico também Edgar Allan Poe, Horácio Quiroga e Lovecraft =D
Abraço
Murilo, fazia tempo que você não aparecia com resenhas por aqui!! Foi por influência sua que comprei um livro do Lovecraft ( gostei muito, já estou com outro dele pra ler na estante) e também pelas suas recomendações comprei Carrie, A Estranha , já que tive uma experiência ruim com Stephen King há uns anos atrás, li Buick 8 e não gostei nada, achei tudo muito vago e que faltou um SENTIDO maior pra história. O engraçado é que acho que sou a única pessoa que leu esse livro ruim do Stephen King, e pelo que todos falam sobre ele parece que escolhi o único livro que não é ótimo...
Enfim, adorei a resenha e espero que você faça mais como essa, pq sinto falata de um espaço maior dedicado aos livros aqui no NSN...
^^
@Joelma Alves
Valeu!
Tenho duas resenhas na fila pra entrar no NSN e tô finalizando mais uma agora.
Engraçado que também estou na lista das pessoas que nunca leram o Buick 8.
Abraço
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