quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011

Avatar FiliPêra

Enter the Void

 

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É vendo filmes como Enter the Void que se percebe como o cinema geralmente é uma arte bem subaproveitada. Mesmo sendo um longo desfile de experimentações visuais e técnicas, o filme passa a cada segundo que estamos diante de um símbolo de ousadia. É o tipo de filme ame ou odeie que não se vê todo o dia e exige bastante de quem assiste. Sexo explícito, viagens potentes com drogas, psicologia moderna, experiências fora do corpo e vida após a morte são alguns dos temas que são estampados na tela a todo minuto, tudo envolto numa linha narrativa completamente anti-convencional e não-linear, algo próximo de uma torrente de pensamentos dos segundos pré-morte. Enter the Void é uma viagem tão incômoda que exigiu de mim esse tipo de aviso antes mesmo de você ler uma resenha sobre o filme.

Não se poderia esperar menos de alguém como o franco-argentino Gaspar Noé. Imagino se as pessoas que viram Sozinho Contra Todos imaginavam onde ele chegaria apenas dois filmes depois. Se Sozinho é um desfile de verborragia e sarcasmo absolutos, uma mostra da insignificância humana perante fatores externos, e que ainda guarda um final redentor a sua maneira; seu filme seguinte, Irreversível, é uma explosão de fúria e trauma desconcertante, mostrando até um ser humano pode chegar em busca da vingança. Enter the Void mistura tudo isso e vai muito além, se aproximando de uma classificação que podemos chamar de hermética.

Outro ponto forte dos filmes de Noé é seu apuro técnico, principalmente seu trabalho com a câmera. Em Sozinho Contra Todos seu estilo se aproximou do cinema chinês, pulsante, mas intercalando com momentos de calmaria, reflexão e falas inspiradas de seu personagem principal; em Irreversível a câmera se transforma num personagem silencioso, vagando por todo o cenário, sem cortes, saindo por janelas, entrando em carros e fazendo trajetórias que mais se aproximam de espirais de pesadelo dentro de boates sadomasoquistas e de ruas lotadas de tipos perigosos como estupradores, prostitutas e cafetães. Enter the Void carrega tudo que Gaspar Noé já construiu em seus filmes, adiciona com experiências extremamente pessoais do cineasta e joga tudo pra estratosfera. Se você não gostou da câmera inquieta de de Irreversível, passe longe desse aqui, pois aquela inquietude é levada ao limite.

 

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Oscar é um jovem francês que mora em Tóquio com a irmã Linda, e termina ganhando a vida como traficante. Entre uma entrega e outra, ele exerce seu hobby: ser um junkie dos mais psiconautas. Entre uma viagem - mental - e outra, ele é chamado por um amigo a fazer uma entrega num bar para estrangeiros… e tudo vai pro inferno, literalmente; em cenas que lembram uma versão full de Smack My Bitch Up, o insano e polêmico clipe do Prodigy - e todo o filme é de fato em primeira pessoa, a câmera é a visão de Oscar o filme inteiro.

Assim como o filme anterior de Noé, contar mais da história é estragar parte da experiência e da construção dramática e factual admirável feita pelo diretor. Aqui não existem cenas que precedem o filme, como a cabeça esmagada por um extintor de incêndio e o estupro de 10 minutos, brindes climáticos de Irreversível, e isso é bom e ruim. Bom porque deixa o filme fluído e contínuo, ao contrário do que foi Irreversível, instável como as placas tectônicas do Japão, com um final pouco condizente com o restante do filme. E ruim porque fica difícil falar sem prejudicar parte da experiência que é ver Enter the Void.

 

Gaspar Noé disse que seu novo filme nasceu da união de sua obsessão pela estética visual de 2001 - Uma Odisséia no Espaço (“A maior de todas as viagens”, disse em ele em entrevista a revista Vice), com sua vontade de transpor para as telas uma série de experiências psicodélicas  e e uma série de tentativas sem sucesso de ter uma experiência fora do corpo quando mais jovem. Ele confessou que o intuito de seu estilo de filmagem é unicamente emular uma viagem de ácido numa tela de cinema. Câmeras, roteiro e edição seriam como agentes químicos na mão dele. A cena de créditos iniciais - que também são os créditos finais - já é uma maluquice só, e segundo Tarantino, uma das melhores sequências de créditos da década… ou da história do cinema (achei exagero, mas tudo bem). Talvez a idéia por trás da maluquice dos créditos seja confundir o espectador, da mesma forma que aquele letreiro que ia virando pro lado no início de Irreversível incomodava grandemente qualquer um.

Junto de Noé, um time de primeira: Pierre Buffin, dono da Buff, cuidou dos efeitos especiais. O nome pode não parecer famoso pra você, mas o cara trabalhou nos efeitos de Clube da Luta, as sequências de Matrix e Avatar. O diretor de arte é Marc Caro, co-diretor de Delicatessen. O autor da trilha sonora é uma das metades do Daft Punk: Thomas Bangalter.

 

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Com uma galera dessas, mais a idéia de Noé, o filme não poderia sair errado. E não saiu, é uma das melhores experiências já filmadas. Entramos na cabeça de Oscar sob efeito de DMT, vemos seus neurônios… tudo em primeira pessoa. Vemos seu passado, sua mente/espírito vagando no pós-morte acompanhando como o Caos se instalou depois de seu assassinato, vemos o passado, o futuro. Para muitos - principalmente céticos - é somente uma chapação sem noção da cabeça de um diretor careca e maluco que manda os atores transarem de verdade e teve experiências pesadas com várias drogas. Mas para alguns teóricos vai parecer uma obra de arte das maiores.

Quem já leu a teoria dos Oito Circuitos Cerebrais de Timothy Leary, por exemplo, vai identificar a alternância de circuitos no cérebro de Oscar - que não é careca e parece com Noé à toa. Segundo as teorias doidas (e que fazem um sentido absurdo) de Leary, certas drogas ativam áreas superiores e pouco usadas do nosso cérebro, o que explica porque Oscar (e nós) vê o funcionamento de neurônios, sai do corpo… e simplesmente entra numa Tóquio que parece restos de uma Las Vegas de ressaca, passando por paredes, acompanhando relações sexuais e passando por dentro de paredes.

O fio condutor de Enter the Void provavelmente é O Livro Tibetano dos Mortos. O volume é uma série de rituais e ensinamentos sobre nascimentos e o além-morte segundo a tradição Lamaísta. Para os leigos no assunto (Eu incluso… mas já tô tratando de comprar o livro, que não é a primeira vez que me foi indicado) existe um diálogo entre Oscar e seu amigo viajandão Alex explicando rapidamente o conceito de Eterno Retorno da morte na tradição Budista do Tibet. O diálogo, assim como o sonho da Alex de Irreversível é como uma versão em miniatura do filme, servindo para situar quem tiver viajando… ou simplesmente para Noé colocar no roteiro a idéia completa da maluquice que tá fazendo. Para unir as duas coisas que citei aqui, basta saber que Leary lia O Livro Tibetano dos Mortos enquanto tava doidão de ácido, e foi justamente ele que tornou o Livro popular nos EUA de novo - enquanto lutava com Skinner em Harvard por considerar as teorias dele mecânicas demais.

 

Óbvio que o filme não é perfeito. Alguns podem acha-lo excessivamente longo e parado e vou entender isso. Quem não teve contato com algum tipo de teoria viajandona dessas (acreditando nelas ou não), ou mesmo já tenha usado algum tipo de psicoativo… vai achar Enter the Void uma extrema viagem na maionese, de muito mal gosto por sinal, com violência gráfica, sexo explícito e gente vagando fora do corpo. Para o bem e para o mal: não é um filme pra qualquer um - e não vou ficar aqui com lenga-lenga de dizer que respeito quem não gostou porque vocês me conhecem.

 

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Mas mesmo os que não gostarem, não poderão acusar Enter the Void - e seu realizador - de não ser ousado, abstrato, um espetáculo visual e uma aula magna e técnica da arte cinematográfica. Uma mistura viajante e bem dosada de Videodrome, Uma Odisséia no Espaço e Irreversível. Também é o que mais próximo que o cinema já chegou de uma viagem psicotrópico-espiritual extremamente pessoal. Se não gosta, passe longe e não diga que não avisei.

Mas Enter the Void é, acima de tudo… e Gaspar Noé voltando a fazer o que sabe melhor!

 

Bônus: Teoria dos Oito Circuitos de Consciência

Trailer do filme

Enter the Void (França, 2009)

Diretor: Gaspar Noé

Duração: 161 min

Nota: 9

3 Comentaram...

Anônimo disse...

Vi o filme depois que li o seu post. Achei muito interessante, depois que acabei de vê-lo não parei de pensar em como deve ser doido comer alguns cubensis e ter uma trip dupla vendo o filme.
Bacana, mas um tanto cansativo.

Lucas Peixoto disse...

Acabei de ver o filme e o achei fantástico! É um tanto longo sim, mas todas as cenas precisam estar lá, e creio que toda a experiência deva ser demorada também, para digerirmos o filme enquanto o assistimos.
Nunca tinha lido nenhuma teoria sobre viagens pra fora do corpo mas o Noé explorou isso de uma maneira tão boa que até mesmo os mais leigos, como eu, conseguem aproveitar muito bem e acompanhar a história de Oscar.
Enfim, que venha o próximo de Noé!

pettoruti disse...

Ei vi o filme faz pouco tempo e desde então estou digerindo ele. Li várias criticas sobre ele depois, mas está com certeza foi a melhor, mais sobria e explicativa.
Sobria porque não se referiu ao filme como uma viagem e explicativa porque destrinchou os varios aspectos do filme.
É um filme que recomendo a muita gente, mas não a todos, pois não é para quelaquer um.
Excelente filme e esta critica tmb, já estou seguindo o blog.

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