“Sou apenas um alcoólatra que virou escritor pra poder ficar na cama até à hora do almoço”
O processo de escrever um romance é longo e pessoal. São raros os que conseguem fazer como Jack Kerouac e Robert Louis Stevenson, caras que já escreveram livros inteiros em míseros três dias (Os Subterrâneos e O Médico e o Monstro, respectivamente). Alguns até vão perdendo o fôlego. Na página 100 podemos ver o autor respirando com dificuldade, na página 200 já está quase desistindo e daí ele só rasteja até a linha de chegada, acabado.
O esforço para concluir um romance pode levar meses ou até anos. Um trabalho duro, onde seus autores, quando realmente bons, são seu sangue e alma. Imaginam cada detalhe mínimo da história, repassam cada linha. Um trabalho mental tão forte que é natural que uma marca pessoal fique impressa no livro, mesmo que inconscientemente. Ainda mais natural é que esse caráter íntimo mude com o passar dos anos e dos romances, a ponto de uma obra do autor ser completamente diferente da anterior. Stephen King comenta que quando pega um livro dele com mais de cinco anos de lançamento tem a impressão que não foi ele quem o escreveu. O Machado de Assis realista é muito superior ao Machado ingênuo do Romantismo. Ray Bradbury escreveu pequenos clássicos do horror antes de repudiá-los e se voltar para a ficção científica. Anne Rice criou excelentes livros de vampiros antes de se dedicar aos seus atuais romances com temática cristã.
Entretanto, também existe um tipo raro de escritores talentosos que praticamente não mudam seu estilo durante toda a vida. Lovecraft, quando escreveu o último conto da sua curta vida, ainda abordava horrores mais antigos que a humanidade, que deveriam permanecer inauditos e já estavam presentes em seu trabalho desde a época de amador, aos quinze anos. Clarice Lispector manteve-se fiel ao fluxo de consciência, mostrando o universo mental dos personagens de forma não linear. Passado e presente, realidade e sono se confundem entre si. Diversas linhas narrativas se entrecruzam, sem preocupações com lógica.
Mas, provavelmente, nenhum outro escritor permaneceu tão uniforme em temática e estilo quanto o contista, poeta e romancista Charles Bukowski. Isto não é uma crítica ao Velho Safado, como também era conhecido. É a prova de que suas centenas de poemas e contos e seus seis romances que ainda fascinam milhares de leitores em todo o mundo, podem ser encarados como uma única e extensa Obra. Não foi à toa que John Martin, o primeiro a lhe dar uma chance como escritor, organizou uma coletânea das melhores histórias desse que é o maior expoente da contra-cultura norte-americana. Isso só foi possível por um motivo. Porque Bukowski escrevia sobre si para falar do mundo. Sua obra, era a sua vida. Seu protagonista, ele mesmo. Com um senso de humor cáustico e auto-irônico, escreveu histórias profundamente auto-biográficas, com uma falta de discrição e sinceridade tão grandes, que ele citava, sem nenhum problema, nomes verdadeiros. Isso quando não fazia duras críticas às pessoas que o cercavam. Não era raro que várias pessoas brigassem com ele por causa disso. Ele simplesmente sentava com uma garrafa de bebida na mão à máquina de escrever e deixava a escrita se fazer naturalmente, sem amarras. Explorava fatos comuns que lhe aconteciam diariamente, transformando sua rotina em obra de arte.
Bares fedendo a mijo e vômito, prostitutas sujas e velhos decadentes, corridas em hipódromos, o estilo coloquial e sujo. Estes são alguns dos elementos presentes na maioria dos textos de Bukowski. Outro é Henry Chinaski, alter-ego seu, que aparece em Mulheres e em contos, poemas e em mais cinco livros.
“As mulheres me conheciam por antecipação por causa dos meus livros. Eu me expunha neles. Por outro lado, eu não sabia delas. O risco era todo meu. Eu podia ser morto. Eu podia ser capado. Chinaski sem as bolas. Poemas de amor de um Eunuco”
“O amor é bom pros os que agüentam a sobrecarga psíquica. É que nem tentar carregar uma lata de lixo abarrotada nas costas, nadando contra a correnteza num rio de mijo.”
Mulheres (1975), o terceiro romance de Bukowski, é sobre o que o próprio nome já indica. Os relacionamentos de Henry Chinaski com as muitas mulheres da sua vida. Nada de romance meloso aqui. São histórias de casos breves de garotas que se encontram com ele por causa da sua fama como escritor e de outras que se envolvem por mais tempo. Como a Lydia, que sempre aparece pra espancar as novas mulheres de Chinaski ou a Sara que dorme toda noite com ele sem nunca transar porque sua religião não permite. O sexo é descrito com riqueza de detalhes, a ponto de ser quase um romance erótico. Ficamos a nos perguntar como um cara com mais de cinquenta anos, assumidamente velho e sujo, fazia tanto sucesso com as mulheres. É verdade que o próprio Buk diz que o que escrevia era ficção, a vida melhorada e, segundo alguns biógrafos, ele nunca transou tanto quanto Chinaski.
A linguagem de Bukowski é como uma marretada, forte e perigosa, mas dada com humor e ternura. Mulheres é um livro capaz de te rir alto, mesmo quando nos mostra Chinaski nas piores situações. E era isso que diferia Bukowski de tantos outros escritores bêbados: seu humor. Com ajuda dele conseguiu o sucesso e também foi considerado o último escritor maldito da literatura americana.
“Eu era a soma de todos os erros: bebia, era preguiçoso, não tinha um deus, nem me preocupava com política. Estava ancorado ao nada, uma espécie de não-ser. E aceitava isso.”
Os personagens, por serem inspirados em pessoas que existiram, são alguns dos mais reais que se pode encontrar em um romance. Todos têm seus próprios cacoetes e defeitos próprios, maneiras particulares de falar. Bukowski tentou trazer a linguagem das ruas. Seus diálogos são coloquiais, comuns. Talvez por isso ele fosse um mestre dos diálogos. Alguns deles são memoráveis, permanecendo gravados nas cabeças de seus fãs muito tempo depois de fechar o livro pela última vez.
“-Quantos anos ela tem?
De repente, silêncio no jato. Todo mundo em volta escutando.
-23
-Ela tem cara de 17
- Tem 23
-Ela ficou duas horas se maquiando pra agora cair no sono...
-Foi só uma hora.
-Vocês estão indo pra Nova York?
-Estamos.
-Ela é sua filha?
-Não, eu não sou pai nem avô dela. Não tenho nenhum parentesco com ela. É só minha namorado, e a gente ta indo pra Nova York.
Dava pra ler a manchete estampada em seus olhos:
MONSTRO DE HOLLYWOOD DOPA
GAROTA DE 17, VAI COM
ELA PRA NOVA YORK, ONDE
A SUBMETE A ABUSOS SEXUAIS,
VENDENDO DEPOIS SEU CORPO A DIVERSOS VAGABUNDOS.”
Bukowski, como sempre, não se limita a contar uma história. Ele dá sempre a sua opinião polêmica sobre tudo a cada página. E sobra pra quase todo mundo. Os escritores mais famosos da sua época não passavam de porcaria pra ele. Era um poeta que odiava conversar sobre literatura e quer distância de outros escritores, sejam bons ou ruins. Pra ele, no fundo, eram todos uns chatos.
“A pior coisa prum escritor é conhecer outro escritor e, pior ainda, é conhecer outros escritores. Um bando de moscas em cima da mesma merda.”
“Tem um problema com os escritores. Se o livro de um escritor foi publicado e vendeu um montão de cópias, o cara se acha um grande escritor. Se o livro de um escritor foi publicado e vendeu um número razoável de cópias, o cara se acha um grande escritor. Se o livro de um escritor foi publicado e vendeu muito poucas cópias o cara se acha um grande escritor. Se o livro de um escritor nunca foi publicado e o cara não tem dinheiro suficiente pra publicá-lo por si mesmo, aí é que ele se acha um grande escritor. Mas, a verdade, é que há muito pouca grandeza. Quase inexistente. Invisível. Pode estar certo de que os piores escritores são os que têm mais autoconfiança e se põem menos em dúvida. De qualquer jeito, é melhor evitar os escritores, é o que sempre tentei fazer, mas é quase impossível. Eles sonham com uma espécie de irmandade, de união. Nada disso tem alguma coisa a ver com escrever, nada disso ajuda na máquina.”
A maioria dos críticos só enxerga o lado mais obsceno e superficial de Bukowski. Mas ele sempre vai bem mais fundo do que isso. Só em Mulheres ele dá a sua visão sobre o sentimento que inspira todas as formas de arte desde os mais remotos tempos: o amor. O amor, o sexo e as mulheres na visão particular do Velho Safado.
“Quando um homem precisava de muitas mulheres era porque nenhuma delas prestava.”
“Decidi que ia viver até os 80. Imagine ter 80 anos e trepar com uma garota de 18. Se tem algum jeito de roubar no jogo da morte o jeito é esse.”
Mulheres é um ótimo livro, mas não chega a ser o melhor de Bukowski. Misto-Quente consegue ser ainda mais engraçado, tocante e melhor escrito. Até a história deste, a infância e adolescência problemáticas de Henry Chinaski, é mais fácil de causar identificação nos leitores. Mas Mulheres guarda em sim os principais elementos que fizeram Bukowski ser um dos maiores escritores dos Estados Unidos. A capacidade de fazer muito com pouco, escrevendo sem rodeios ou enrolações, deixando implícito o que quer passar ao leitor em uma ou duas frases. Essa é uma das suas maiores qualidades: a concisão. Aliás, todo escritor deveria ter essa habilidade: a de evitar toda e qualquer palavra desnecessária. As caracterizações dos personagens de Bukowski são breves e precisas. As descrições de ambientes são rápidas, quando feitas. Fico me perguntando porque aqueles romancistas de hoje que dão o relatório completo de cada roupa dos personagens e listam seus hábitos alimentares não tentam seguir um caminho semelhante. Então lembro que é porque eles não têm competência para tanto.
Bukowski se deu relativamente bem no Brasil. Tem mais de dez livros publicados e um bom número de leitores fiéis. Mas Mulheres está terrivelmente fora de catálogo, só podendo ser encontrado em bibliotecas (meu caso) e em sebos. Este é apenas mais um dos muitos livros essenciais que estão esgotados no Brasil. Um capítulo essencial da vida de Henry Chinaski, à espera de uma nova edição. Já está mais do que na hora de Bukowski ser amplamente reconhecido pelos brasileiros.
Autor: Charles Bukowski
Páginas: 284
Nota: 8,5
2 Comentaram...
Bukowski foi um gênio e esse é um de meus livros favoritos.
O velho safado é o melhor, sempre penetrando os fatos e gozando nas incertezas
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