Quem já viu os filmes mais peculiares de David Lynch sabe: ele não está nem aí para qualquer tipo de amarra ou convenção narrativa a que estamos acostumados. Seus trabalhos são um mergulho profundo em pesadelos e nas camadas psíquicas pessoais de seus personagens. Por esse motivo a máxima “ele faz cinema pra ele mesmo” se encaixa com perfeição nele. Com exceção dos ótimos A História Real e Homem-Elefante, seus filmes são misturas de momentos “reais” com inserções oníricas, que servem como um vasto aprofundamento psicológico de pessoas específicas, coisa que poucos sabem fazer. O resultado não é para todos, mas não num sentido elitista de falta de bagagem cultural, como é comum no uso dessa frase, mas unicamente pelo fato de serem poucas pessoas as dispostas a se submeterem a experiências tão perturbadoras e estranhas.
De uma forma geral, Império dos Sonhos forma uma trilogia de Hollywood feita por Lynch, juntamente Cidade dos Sonhos e A Estrada Perdida. Da mesma forma que houve uma amplificação dos temas, Lynch, ao longo desses três filmes, se pôs a explorar e aumentar ainda mais o desconforto com relação a quebra de linearidade narrativas de modo único. Se em Cidade dos Sonhos o fator sonho era integrante do mistério da trama, em Império dos Sonhos ele é a trama, quebrando qualquer chance de se desenvolver algum tipo de interpretação geral para tudo que ocorre por lá. E por isso o filme é caótico e gera visões completamente pessoais quanto a algum tipo de sentido existente por trás de tudo.
Alguns motivo para tamanha maluquice são puramente técnicos. Lynch abraçou a tecnologia digital, o que excluiu os custos quanto o uso de películas. Erros de gravação deixaram de ser dispendiosos e ele se permitiu viajar, filmando e refilmando à vontade, o que também lhe proporcionou a facilidade de acrescentar efeitos e cortar o orçamento. Soma-se a isso o roteiro do filme, quase inexistente, o que estendeu as filmagens e produção por quase três anos. Lynch parava a produção por semanas, esperando algum momento de inspiração pra poder retomar as filmagens. A aparente desconexão extrema das coisas que rolam na tela - o que não é inédito na filmografia do cineasta desde… bom, desde Eraserhead - surge exatamente por esse motivo, embora com algum esforço mental seja possível encontrar uma linha geral para boa parte do que rola na tela.
A idéia e essência da história de Império dos Sonhos já pode começar a ser desvendada já em seu título, que cria uma conexão entre acontecimentos “reais” e uma complementação onírica dos mesmos acontecimentos. Mas não é o simples “tava sonhando… agora acordei” daqueles finais babacas em que o roteirista precisa de alguma desculpa para invalidar tudo de estranho que rolou no filme. David Lynch vai no limite e leva a um questionamento da própria realidade, ao invés de separar esses dois campos da percepção humana de forma mecânica e reducionista. Em seu título original - Inland Empire - o filme faz referência a uma área rural e semi-desértica de Los Angeles. Também pode ser entendido como uma referência a paisagem mental subconsciente humana. Juntando esses dois conceitos, podemos classificar o estado dos protagonistas de Império dos Sonhos de Deserto Mental, um lugar maluco onde o real se confunde com o não-real, que para alguns ramos da psicologia seriam interpretações criativas feitas pelo inconsciente.
Preso a isso, Lynch - para o bem ou para o mal - se liberta, inclusive de amarras rígidas como o próprio Espaço-Tempo. Nikki é uma atriz que foi famosa que está na torcida para conseguir um papel num filme importante, ao mesmo tempo que é visitada por uma vizinha aparentemente cigana que despeja várias metáforas sobre caixas de Pandora e a chegada do Diabo ao mundo. Além disso, a tal cigana traça um importante paralelo sobre como funciona as amarras espaço-temporais do filme, colocando tudo num nível próximo do da mágica. Nikki é casada com um marido ciumento e possessivo, que não vê com bons olhos o fato dela possivelmente contracenar com Devon, ator bem conhecido por transar com as atrizes que atuam ao lado dele.
Além desses personagens principais, outros orbitam ao redor, gerando linhas narrativas estranhas e que se complementam e referenciam. Logo de cara um casal com os rostos borrados entra num apartamento, numa cena erótica que contém uma frase que serve como chave para uma espécie de portal onírico do filme: “AXXoN N., a peça teatral radiofônica mais longa da história...” Todo momento que AXXoN aparece, principalmente em alguma porta, a personagem acaba se transportando subjetivamente pra outra dimensão. Pode parecer maluco, mas não é diferente da orelha decepada de Veludo Azul, ou da arma de Cidade dos Sonhos. Quando esses elementos apareceram nesses filmes, podemos vislumbrar uma outra realidade, bizarra, estranha, um submundo… mas ainda assim palpável, e até entendível sob alguma espécie de lógica fortemente abstrata. Aqui em Império dos Sonhos as realidades abertas são múltiplas, mostrando que Lynch colocou no filme um aumento da capacidade dele de abstração, conectando o filme com a psique e a forma de nós pensarmos, de forma desconexa, não-linear.
Também existe uma similaridade desses filme com os anteriores de Lynch na forma como ele abre as portas de seu mundo mental. Em Veludo Azul é o momento em que Jeffrey fica no armário observando, em Cidade dos Sonhos é quando Betty encomenda a morte de Rita. Em Império dos Sonhos o momento é duplo: uma cena de sexo entre Nikki e Devon, logo após a revelação de que o filme que eles estão participando ser o remake de um filme jamais terminado e baseado numa lenda cigana polonesa, porque os atores acabaram assassinados como seus personagens. Esses momentos são chave, e a partir daí nada mais é convencional, Nikki se confunde com sua personagem Susan Blue e passa a chamar Devon por seu nome no filme: Billy.
Essa forte metalinguagem é o primeiro fator de confusão, mas Lynch não se dá por satisfeito e mistura essas duas realidades com o psicológico de Nikki, e só aí já são três realidades praticamente distintas. Existem ainda outras linhas narrativas para embaralhar ainda mais. Parte desses elementos são puramente metafóricos. A derrocada psicológica de Nikki pode ser interpretada como a jornada de construção de personagens levada a cabo pelos melhores atores, e isso é escancarado quando descobrimos Nikki como como atriz e protagonista de seu próprio filme, mostrando visualmente o caráter dualista das melhores interpretações. Em alguns momentos isso vai tão longe que vemos ela se observando, participando duplamente da mesma cena, como protagonista e uma estranha observadora que embaralha o desenrolar dos acontecimentos.
Fora isso Lynch ainda espalhou cacos de outras projeções em seu filme. Vemos uma novela polonesa - que são possíveis conexões com o fato do roteiro ser baseado numa lenda polonesa -, uma garota assistindo a tal novela, uma sitcom com personagens com orelhas de coelho que mais se assemelha a um purgatório, algo no estilo da Sala Vermelha de Twin Peaks. Essas camadas se interpõem e se misturam. A garota é assistida e interage com o filme de Nikki, que entra na novela polonesa. Personagens observam outros por frestas e telas - Lynch gosta desse conceito de visualização interpretativa da realidade, no melhor estilo da Psicologia da Percepção.
Além desse joguete puramente psicológico que pode ser interpretado de uma infinidade de formas - embora o próprio Lynch diga que os espectadores devem fugir de qualquer tipo de interpretação racional, “real” -, existem outras formas de analisar Império dos Sonhos. Tecnicamente ele é bem diverso, o que casa de forma magistral com a imposição climática que David buscava. O peso do noir, bastante aparente em Cidade dos Sonhos, aqui retorna em algumas camadas exploradas pela narrativa. A típica aura de terror com suspense psicológico dos filmes do cineasta, com o peso das trilhas sonoras, aqui está em tudo, a loucura crescente de Nikki é nossa loucura, não somos meros espectadores da mesma forma que ela não é uma simples atriz interpretando um papel. Existe também no filme uma pesada crítica ao modus operandi hollywoodiano, que descarta atrizes que terminam se prostituindo nas imediações barra-pesada do lugar, e isso fica claro com o contato de Nikki com várias prostitutas e mendigos na calçada da fama.
Analisando Lynch como um filho das artes plásticas, é de se julgar Império dos Sonhos como a obra-prima dele, pois é a que mais aproxima cinema da abstração que ele pretende alcançar com suas narrativas estranhas e inserções oníricas no meio do filme. Mas como puro cinema, o filme é unicamente três horas de um amontoado de coisas praticamente sem sentido quando confrontado com nossa visão racionalista cartesiana e mecânica. Para os que odeiam essa mistura de linguagens artísticas, o filme é uma merda inominável, para outros um exemplar de cinema-arte genuíno. No fim das contas ele é uma experimentação extrema de Lynch, que com certeza ficou feliz com o resultado alcançado. Para mim, é um meio termo desses extremos. Os últimos resquícios de roteiro convencional que David possuía - que tornaram A Estrada Perdida e Cidade dos Sonhos razoavelmente interpretáveis - foram definitivamente abandonados, e seus filmes parecem caminhar na direção da pura viagem mental, tornando a experiência ainda mais inacessível e única, no melhor estilo Fellini e Buñel.
Eu gosto, embora pareça forçação de barra, pois leva o cinema a seus limites, escapando do convencional e nos obrigando a absorver o filme de formas um pouco diferente. Mas quem achar um filme descartável Eu até entendo, afinal, como disse Carl Jung, nossa percepção se divide em pensamento, sentimento, sensação e intuição… duas delas dispensando a racionalização. E Lynch usa o cinema pra explorar essas nossas faculdades pouco usadas.
Inland Empire (France | Poland | USA, 2006)
Diretor: David Lynch
Duração: 180 min
Nota: 8
1 comentário
Excelente crítica! É relativamente fácil achar críticas dos outros dois filmes da "trilogia", "Mulholland Dr." e "Estrada Perdida", mas esse, aparentemente, assustou muita gente, rsss...
Mas eu adorei!!
Só pra acrescentar algo que você não mencionou (seguindo a máxima de "pra que explicar se dá pra confundir?", rss), no DVD duplo do filme tem uma série de extras bem interessantes, entre os quais um "filme" de 75 minutos chamado "Mais Coisas que Aconteceram". Trata-se daquilo que, nos filmes "normais", seriam as cenas cortadas, mas nesse caso aparecem editadas quase como um segundo filme que complementa o filme principal.
Eu ainda não assisti "Mais Coisas que Aconteceram", antes pretendo rever "Império dos Sonhos", mas estou certo que deve tornar o filme ainda mais críptico do que já é, rsss...
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