sexta-feira, 24 de dezembro de 2010

Avatar FiliPêra

Cisne Negro

 

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Não importa quão distante você vá no passado da humanidade, creio que verá que todo o tipo de povo que deixou registros desenvolveu algum tipo de teoria acerca das interações da persona humana. E praticamente todas essas teorias e modelos psicológicos fazem divisões dualistas. No Ocidente temos a famosa obra Metafísica, de Aristóteles que fez uma simplificação do mundo dividindo tudo de modo maniqueísta, em preto e branco. E as consequências de tal modelo teórico podem ser sentidas até hoje. No Oriente temos o famoso Yin e Yang, que diz que forças opostas se complementam e equilibram… as trevas não existem sem a luz e vice-versa. Até dentro da Psicologia existe uma certa discordância de como essa dualidade influencia nosso comportamento. Os behavioristas, de forma geral, dizem que somos influenciados principalmente por estímulos externos, que nos jogam de um lado pra outro. E os psicanalistas dizem é que frações diferentes do nosso Inconsciente nos jogam de um lado pro outro, e cabe a uma parte do nosso Consciente tomar algum tipo de decisão baseado nesse cabo-de-guerra mental.

Se Cisne Negro for analisado a partir dessa perspectiva, provavelmente irão encaixa-lo como uma projeção da atuação dos diferentes lados do Yin Yang dentro da persona de alguém. Mas ao contrário do que pode parecer pelo título, tudo rola de forma bem sutil, longe de maniqueísmos e manipulações baratas. O conjunto pode ser chamado sem medo de suspense psicológicos com ecos de terror.

Natalie Portman é Nina Sayers, uma bailarina tecnicamente perfeita que consegue o papel principal numa versão do balé O Lago dos Cisnes, coreografada por uma companhia de Nova York. Ela é adorável, frágil, meiga, e por isso mesmo perfeita para o papel principal. Mas seu excesso de técnica deixa sua interpretação do Cisne Negro - a gêmea má do Cisne Branco - um tanto quanto truncada, sem personalidade. Você é perfeita, mas sua dança é mais fria que uma geladeira, chega a dizer para ela Thomas Leroy (o ótimo Vincent Cassel), o coreógrafo da companhia de balé. O filme é basicamente o processo de desconstrução dessa perfeição. E para complicar as coisas, surge Lily, uma bailarina justamente com o perfil extrovertido que Thomas deseja, e desprovida de qualquer tipo de milimetrismo técnico. Ela age sobre Nina como uma flutuação magnética age sobre uma pilha de pregos enfileirados, desestabilizando tudo, prestes a mandar o equilíbrio dela pro chão.

Mas as ações das duas vão se fundindo, Nina aos poucos vai perdendo o senso de realidade, tem constantes alucinações, aparece com ferimentos misteriosos, vê a si mesmo em espelhos… ao mesmo tempo que sua obsessão pelo papel alcança níveis estratosféricos. Essa constante dualidade entre as duas - Lily é real? É fruto da mente de Nina? - é uma das molas-mestra do filme, assim como os delírios psicológicos e seu modo de tentar destruir seu excesso de técnica mecanizada.

 

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Pode parecer novidade para alguns, mas Cisne Negro não passa de uma junção bem pensada de Pi e O Lutador, dois filmes anteriores Darren Aronofsky, que aqui continua tecnicamente perfeito. Na verdade, pode-se dizer que todos os filmes de Darren lidam com aspectos psicológicos bem similares dos seus personagens. A única exceção é o subestimado A Fonte da Vida. Se a WrestleMania for substituída por uma companhia de balé, boa parte da jornada física de Nina fica dor a dor com a sessão de masoquismo de Randy Robinson. Aquela porção bastidores de estrelas que mostrou Randy se cortando com uma gilete, tendo ataques cardíacos, se contorcendo ao tomar cadeiradas na cabeça… se repete aqui. Nina é quebradiça, seus pés são feios, seu corpo é magricelo, suas costas são feridas, e sua rotina é maior do que ela. Ela é uma prisioneira do balé, e não parece nenhum pouco capaz de escapar disso.

Aronofsky é um mestre em tornar algo quase intangível como o perfeccionismo do balé em algo comum, destrutível. Acompanhamos a rotina de Nina com crueza. A câmera faz planos detalhes nos pés eretos a 90º e calejados que sustentam o corpo da bailarina, faz movimentos complexos juntamente com as dançarinas - gerando cenas de dança belíssimas, cai com elas, foca em suas poucas feições de dor. É um modo intrusivo de filmar e joga o espectador efetivamente dentro do universo fisicamente puxado de Nina, além de arrumar espaço para desnudar o lado psicológico e sombrio dela. Se você pensou nos delírios de Max Cohen enquanto caçava a teoria definitiva da matemática em Pi, acertou. O processo aqui é similar: mostrar o externo pra adentrarmos o interno do personagem. É quase uma visão solipsista de realidade, quando tudo que acontece é fruto de interações cerebrais com uma metafísica energia externa. 

E assim como Pi, a jornada delirante faz parte da forma como Nina alcança sua genialidade destrutiva. Como visto no trailer, existe também uma escalada de sexualidade e libertação da mimada Nina. A mãe dela é a típica bailarina frustrada que joga na filha toda a pressão pelo sucesso que ela não teve. Erica, a tal mãe, a trata como uma menina de 12 anos, enche seu quarto de bichos de pelúcia, pinta quadros dela todo o dia, e não coloca trancas nas portas. Além de prisioneira da própria obsessão pelo balé, Nina está presa a obsessão da própria mãe pelo sucesso.

 

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Cabe a Thomas destruir essa máscara de racionalidade, obsessão e mecanicismo que aprisiona o lado Negro de Nina. E como primeiro método, ele fala de sexualidade, pergunta sobre sexo, namoros e prazer. O prazer - mesmo praticado de forma inconsequente - é justamente a ferramenta mais fácil de ser alcançada na busca desse tipo de liberdade que aprisiona a bailarina. Em uma cena particularmente bem feita, em que ela se masturba na cama - de forma bem convincente, diga-se de passagem -, percebemos essa luta de lados opostos que lutam dentro da cabeça dela: o lado cultural, uma capa externa, consciente, do tipo que mede e coloca regras que poucos parecem entendem; e o lado instintivo, que luta e busca se sobressair sobre essas imposições. O resultado das experiências dela diz muito sobre quem ela é, e sobre o filme em geral - e sim, a cena de pegação da Natalie e da Mila Kunis é linda demais, e muito importante pro filme.

Há ainda mais debates possíveis dentro do que o filme mostra. Pode-se olhar a exploração por parte dos chefes das companhias de dança - Sorria, nós precisamos de dinheiro -, bem como o tipo de relação predatória e canibal entre as colegas de dança. Uma das respostas a esse questionamento surge na figura da personagem Beth (Winona Ryder, brilhante), a antiga estrela de O Lago dos Cisnes, que por motivos obscuros deixou a companhia. O sacrifício quase masoquista não é só individual, unicamente das estrelas, mas também coletivo, existe toda uma pressão de todos os lados aos que se propõe a ganhar a vida com arte. Existe ainda a relação ambígua entre a estrela e o coreógrafo, algo não muito raro - como mostra o exemplo do conhecido coreógrafo George Balanchine. Embora tenhamos a tendência de olhar tal tipo de relação somente do âmbito físico, carnal, fica patente que o objetivo de Thomas - e de George, provavelmente - é quebrar o enclausuramento artístico e técnico das bailarinas, nem que pra isso precise provoca-las sexualmente.

O filme consegue ir mais além pelo fato de ter rolado um esforço genuíno e angustiante de Natalie Portam. Ela emagreceu, dançou em 90% das cenas, se despiu de quase todo o tipo de beleza - mesmo quebradiça, ela continua linda - e ainda arrumou tempo para mergulhar num mundo paranóico. Pode-se dizer que ela foi ao limite, do céu ao inferno em segundos, todos os outros atores brilham, mas com o único intuito de dar espaço pra ela. Esteticamente, o filme triunfa como um thriller noir moderno que flerta com longas dos anos 70. Seria como um Taxi Driver filmado pelos Irmãos Pang. Ou uma produção de Hitchcock com balé.

 

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Apesar do final que fica em parte aberto - mas é conclusivo a sua maneira -, o tipo de jornada de Cisne Negro me parece marcante e cíclico, tanto no mundo das artes quanto em estudos científicos: é libertação de algum tipo de instinto humano que se sobressaia a nossa carga cultural e racional. Também é uma mostra muitíssimo bem construída do ponto final de uma obsessão profunda de artistas e cientistas, quando um objetivo se torna maior que a pessoa que o persegue. Embora o tipo de construção visual e sonora primorosa que aproxima esse filme dos exemplares mais arrojados da filmografia de David Lynch, não creio que, assim como Império dos Sonhos, Cisne Negro seja uma obra completamente abstrata e onírica, permitindo infinitas interpretações. Similar a Pi, Aronofsky reservou algum tipo de linearidade e realidade dentro da trama que construiu, e esse fator é um responsável por colocar o filme num patamar ainda mais elevado.

Um dos grandes filmes do ano, e mais um marco na brilhante - e ainda perfeita - carreira de Darren Aronofsky.

 

Black Swan (EUA, 2010)

Diretor: Darren Aronofsky

Duração: 108 min

Nota: 8,5

6 Comentaram...

Aleatório disse...

Faltou você mencionar a questão das trilha sonora. Puta que pariu, as cenas com a tensão alta e tendo como trilha o lago dos cisnes foi foda pra caralho xD

Eu não vi a classificação do filme, mas acredito que seja de suspense, é um filme muito foda \õ/

Cainã Monteiro disse...

= não creio que, assim como Império dos Sonhos, Cisne Negro seja uma obra completamente abstrata e onírica, permitindo infinitas interpretações.
não sei se permite infinitas interpretacoes, mas acho que o final do filme se aproxima e muito do abstrato e do onírico.

I'm 21 disse...

EU TENHO UMA IMENSA CURIOSIDADE DE SABER COMO VOCÊ TEM ACESSO AO FILME ANTES DE TODOS NÓS, POBRES MORTAIS! VOCÊ PODERIA ME EXPLICAR?
@Ton1992

Arthur Ribeiro disse...

Filme FODA. Dá agonia, a trilha sonora é linda e a Portman simplesmente roubou todo o filme pra si, atuando fodásticamente bem. Recomendo muito MESMO. ^^

Marcela Freitas disse...

Cisne Negro é belíssimo!
E o esforço da Natalie Portman é mesmo notável!
Filme fantástico.

Diabla da Freeway disse...

Natalie Portman ja devia ter ganhado um premio ha tempos,desde V de Vinganca.

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