Existe um ditado militar que diz que “não importa quão acima você vá, sempre vai sentir o peso das botas dos seus superiores”. Em Tropa de Elite a frase se aplica, só acrescentando merdas ao lado de botas. É basicamente nesse contexto que está inserida a jornada do Capitão Nascimento. Se no primeiro filme - duramente criticado por alguns, classificado como fascista e extremamente violento, provavelmente derivado de uma interpretação superficial e equivocada do longa, focada unicamente em achar heroísmo nos atos da tal tropa de elite, e não em buscar o contexto exposto pela trama - a grande preocupação de Nascimento era fugir da linha de frente da batalha, agora que estava com a responsabilidade de cuidador do filho, aqui na sequência os problemas cresceram, “o inimigo agora é outro”, como anuncia o subtítulo do filme. O microcosmo do primeiro filme nos mostrou que a visão de Nascimento à respeito dos verdadeiros problemas de segurança pública do Rio de Janeiro era limitada ao seu raio de ação, nas constantes subidas em favelas. Como chefe de uma unidade do BOPE, ele entendia que a solução desses mesmos problemas era dar umas surras em compradores de drogas e atirar até fazer o sangue escorrer nos morros. Provavelmente foi essa simplicidade - tanto temática quanto narrativa - que agradou tanto ao público que compareceu em massa aos cinemas (e aos camelôs), e ao mesmo tempo inflou comentários acalorados.
A sequência conseguiu o impossível: contextualizou toda a verve violenta de Nascimento e dos membros do BOPE de forma mais segura, e mostrou as merdas dos superiores deles, antes quase invisíveis, criando cenas de ação tão secas e bem orquestradas quanto o do primeiro. Fora isso, insere e desenvolve personagens e frases tão inspiradas quanto o filme anterior, o que já são duas vitórias esplendorosas. Mas tem mais, muito mais. Tudo começa com uma ação especialmente sangrenta dentro de Bangu I - onde surge a anunciada participação de Seu Jorge. Em poucos momentos já sabemos que Nascimento voltou pro BOPE e justamente aquela ação mudaria toda a ordem das coisas na sua vida… e no andamento da segurança carioca. Quem teve problemas com sugestões de fascismo e repressão extremada dos tapas na cara do primeiro filme, vai se debater na cadeira nesse momento: somos apresentados a um “babaca dos direitos humanos, um aliado dos maconheiros”, o professor Fraga, que entra na cadeia para negociar com os integrantes rebelados do Comando Vermelho. As consequências do massacre já apontam a primeira contradição do Sistema apresentando no filme: Nascimento é exonerado da polícia por pressão da mídia, mas é promovido a subsecretário de segurança do Rio responsável pela Inteligência (grampos e escutas, em outras palavras), já que membros da elite da cidade o aplaudiram como herói - numa cena quase dantesca de tão surreal. A particular contradição revela um fraco do novo inimigo dele: para onde a mídia aponta, o inimigo vai junto, mesmo estando certo, segundos antes, da exoneração total do Nascimento. E o resultado disso são cenas nervosamente bem-humoradas.
A escalada hierárquica do agora Tenente-Coronel Nascimento vai trazer mudanças drásticas no BOPE e no próprio Sistema que ele combate/protege. Nascimento transforma o BOPE numa máquina de guerra que expulsa traficantes de favelas como nunca antes. Mas sem traficantes, os governantes perdem milhares - ou milhões, sei lá - de reais de propinas e arregos, e a situação começa a ficar insustentável para eles. A solução é simples: policiais aproveitam o vácuo de poder e passam a agir como máfias, extorquindo dinheiro das comunidades para enriquecerem. Surge aí as milícias saídas de setores corruptos da PM. Em outras palavras: o BOPE passa a ser ponta de lança na propagação de um novo tipo de criminalidade, baseada em estados-paralelos organizados por grupos armados do próprio governo. O benefício político é duplo: a imagem dessas milícias pode ser aproveitada pelos governantes para mostrarem que mataram o tráfico, além de usarem essas áreas lotadas de aliados para transformar favelas em feudos eleitorais. É nesse jogo complexo e sujo que Nascimento se vê envolvido, fazendo da paranóia extrema sua maior aliada e desconfiando de todos. E é assim que o filme cresce estratosfericamente.
E não é só Nascimento que evoluiu, mas todo o quadro de personagens. Sem exceção. Matias deixou de ser o aspira idealista e agora é o aguerrido Capitão Matias, que vai do céu ao inferno em minutos. Fábio agora é Coronel, continua chorando por ganhos baixos e disparando frases memoráveis. Além deles temos a inserção de gente do naipe de Fortunato, um Wagner Montes genérico (até o nome do programa dele, Mira Geral, referencia Montes) inspirado e soltando impropérios a todo o minuto. O próprio Fraga, que começa como um idealista aparentemente amante dos bandidos, vai crescendo durante a trama.
Comparar o roteiro de Tropa de Elite 2 com seu antecessor soa quase covarde. É como comparar - guardadas as devidas proporções - Rambo com um filme de Martin Scorcese (e Eu gosto bastante do primeiro filme). O microcosmo ainda existe - repare em como tudo é especialmente pessoal durante o filme, todos os antagonistas tem questões menores para resolverem entre si - mas a visão agora é panorâmica, abrangente, atingindo a verdadeira veia do problema, com eventos bem amarrados de forma estupenda. E Nascimento faz essa veia sangrar, da maneira que sabe melhor: com violência. E mesmo permeado de fartas cenas de ação, tudo tem motivo para acontecer em Tropa de Elite 2, e carrega consequências sempre drásticas. A montagem de Daniel Rezende (responsável por Cidade de Deus, onde fez um trabalho de arte) é bruta, e responde a altura a complexidade da trama, chegando a tornar as narrações em off de Nascimento - às vezes chatas e didáticas, mas que servem para torna-lo humano - menos óbvias.
Nascimento era todo-poderoso no primeiro, era a “pica da galáxia”, como disse Fábio, mas aqui se vê cercado de morte e tem sua própria vida ameaçada a todo momento. Seu emocional era fraco por causa do filho, mas agora está em frangalhos devido a pressão que vêm de seus familiares (seu filho e sua ex-mulher o classificam como assassino), do governo (que o vê como uma ameaça) e até de seu amigo Matias (que o vê como um vendido). A qualidade narrativa é tão primorosa, que reserva momentos catárticos quase manipulativos: você pode não aprovar os métodos de Nascimento, mas provavelmente vai vibrar (ou se contorcer e chorar, como alguns da sala em que Eu estava assistindo) quando ele guarda o braço pra descer uma sova bem aplicada em políticos corruptos diretamente envolvidos com crimes. É uma reação natural, humana, usar uma válvula de escape, e isso está presente em vários momentos do filme, e nunca de forma óbvia.
Mas, apesar do salto de qualidade gritante em todos os aspectos dessa sequência, o questionamento continua o mesmo: pra que serve a violência policial? Ela ajuda ou só piora os crimes que propala combater? Até que ponto homens como Matias e Nascimento se tornam monstros (como alguns disseram sobre Tropa 1)? Se o filme anterior era apenas uma janela nua e crua de uma rotina de violência presente no Rio, aqui existe um aprofundamento. A questão chega a ser parcialmente fechada e respondida, quando no final, o filme faz uma panorâmica sobre o Palácio do Congresso, mas as entrelinhas continuam ali para serem lidas. Vemos Nascimento liquidando uma penca de inimigos, mas ao mesmo tempo percebemos como a criminalidade tem uma aparência cíclica, sempre arranja alternativas. Das cinzas acabam saindo figuras improváveis para dominar o que restou. E a humanidade dos personagens trata de representar toda essa cadeia de eventos de forma especialmente visceral. A jornada de Nascimento é árdua, se assemelhando a um círculo e, no fim, se aproximando de quem achava que eram seus inimigos, passando por toda a sorte de gente podre no caminho.
Corajoso, honesto e certeiro. Brilhantemente dirigido, majestosamente interpretado, com um petardo de mensagens bem mais claras e abrangentes, e personagens sem igual no cinema brasileiro. Ache você fascista, repressor ou qualquer tipo de adjetivo que represente a natureza da ação dos seus protagonistas principais... a verdade é que Tropa de Elite 2 é um filmaço.
Tropa de Elite 2 - O Inimigo Agora é Outro (Brasil, 2010)
Diretor: José Padilha
Duração: 116 min
Nota: 9
10 Comentaram...
O que eu tenho a dizer? Que estava ansiosa pela resenha... que não vejo a hora de assistir...
Não assisti ainda o Tropa @, mas sobre o 1, o que acho é que a ação nos moldes hollywoodianos glorifica a Polícia e acaba por solapar qualuqer crítica ou conteúdo que pudesse existir no roteiro.
Na época do lançamento, a onda facista policiaresca repressora coservadora veio com força total.
A violência existe, não podemos negá-la. Mas não devemos glorificá-la. É aí que Tropa de Elite peca: louva o que critica e transforma em heróis os criminosos legalizados.
Espero que o Tropa 2 não repita estes erros. Vou conferir.
A resenha está excelente!
Abração
Gabriel Dread
Ok, gostei da resenha, mas pq levou 9?
@Gabriel...
Ué, pelos motivos que expliquei no texto!
Não entendi o pq do 9.
O filme é uma obra prima, extremamente inteligente, rico, emocionante e atual. A atuação do Wagner Moura está mais fodastica que o primeiro. Mas méritos a parte, realmente a história do segundo e totalmente diferente do primeiro. Quem gostou do 1º, vai amar o segundo. O filme é muito mais rico e inteligente, a maneira como o quebra cabeça começa a se encaixar e de forma fluida. Olha somente mesmo indo ao cinema para sentir o que eu estou escrevendo.
Tá ok, não tinha entendido bem. Vlw!
Não há o que comentar,
realmente só existe uma forma de resumir:
- FILMAÇO!
Kara.O filme dá uma sensação de que não há mais nada a fazer,que já está tudo "dominado",mas a última cena nós entrega aquele velho axioma "enquanto há vida,há esperança."
FIL-MA-ÇO!
"ou se contorcer e chorar, como alguns da sala em que Eu estava assistindo"
Hmmmm???
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