quarta-feira, 27 de julho de 2011

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O Iluminado

 

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“Tudo que é hotel grande tem seus escândalos. Assim como todo grande hotel tem um fantasma”.


A humanidade chegou a um nível de desenvolvimento inimaginável tempos atrás. Tudo bem que não fazemos tour pelo espaço ou temos carros voadores, mas conseguimos avanços significativos como transplantar membros e órgãos inteiros, se comunicar com uma pessoa do outro lado do mundo instantaneamente ou se locomover de um país a outro em poucas horas. Contudo, existem coisas que por mais que a ciência avance e o tempo passe seus pesquisadores descobrem pouco. Muito pouco. Uma das mais inexplicáveis é a mente humana. E o pouco que se sabe ainda pode cair por terra, como a teoria de que o ser humano só usa 10% da capacidade cerebral.

Mas um de seus maiores mistérios são os fenômenos parapsíquicos. Os mesmos nunca foram comprovados, embora experiências sobre o tema sejam feitas desde 1800. E, em todas elas, os resultados foram surpreendentes. Em uma particularmente foi ordenado aos voluntários que imaginassem uma casa e depois a desenhassem, mesmo sem terem nenhuma informação prévia. Alguns dos testados representaram a residência exatamente como ela era. Isso não comprova que a telepatia ou premonição façam parte da realidade, mas demonstra que não devemos descartar a existência destes e de outros fenômenos simplesmente porque vai contra as leis mais básicas da natureza e os preceitos da ciência.

Os fenômenos parapsíquicos serviram de inspiração para centenas de artistas. Stephen King foi um dos mais entusiasmados deles. Ele já tinha dois livros publicados quando começou a germinar a idéia de O Iluminado em seu íntimo. Nessa época, King estava sempre bêbado e já era um alcoólatra há anos, tanto que afirmou não fazer idéia de como conseguiu terminar seus livros naquela época. Talvez ele nunca houvesse largado o vício se sua família e amigos não interviessem, jogando fora, na sua frente, todas as garrafas de bebida e se sua esposa não o ameaçasse deixá-lo. Desde 1980, cortou todo tipo de droga e se mantém sóbrio desde então. Mas não fosse esse vício provavelmente nunca daria ao mundo o livro que o consagrou como um dos mais famosos do horror. Porque The Shining, o título original, refletia essa fase complicada da sua vida. Mas sem deixar de focar no suspense e na complexidade da trama que fez dele um dos autores mais vendidos do mundo.

 

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E é justamente essa complexidade, aliado ao seu horror-suspense tão característico, que faz Stephen King ser um verdadeiro mestre. Geralmente, livros e filmes do gênero são essencialmente simples em seus enredos. Uma família ou grupo de amigos que vai a algum lugar e começa a ser atormentado por um espírito, um maníaco ou algum tipo de criatura. Já nas obras de Stephen King, as tramas são mais elaboradas e bem construídas, num processo crescente de tensão que nos leva até o clímax. Carrie mostra toda a crueldade que os adolescentes podem demonstrar com um colega mais fraco e o fanatismo religioso na vida de uma garota com dons telecinéticos. A Hora do Vampiro mostra uma pequena cidade sendo invadida por vampiros enquanto explora o próprio passado negro do local e a vida bem particular de seus habitantes, junto das reações de cada um quando começam a perceber que tem alguma coisa muito errada em curso. Já em O Iluminado isso é levado ainda mais longe. Não é apenas uma história de uma família que se muda para um hotel mal-assombrado. O romance guarda bem mais por trás de suas páginas.

Não é incomum que algum personagem de Stephen King tenha semelhanças com ele. Mas Jack Torrance é um dos poucos que ele assumiu ter se inspirado em si mesmo. O enredo é impulsionado por Jack. Ele é uma pessoa atormentada pela culpa. Depois de seu casamento com Wendy quase desmoronar por causa da bebida, de um acidente com o filho Danny de cinco anos e de ter perdido o emprego ele está em uma situação difícil. O seu dinheiro está quase acabando, e eles são obrigados a se mudar para uma casa menor. Tudo o que ele quer é uma chance para se reerguer. Chance esta que o amigo Al Shockley lhe dá oferecendo um emprego como zelador do hotel Overlook durante o inverno, período em que fica fechado. Uma chance que pode ser a última da sua vida.

Assim vai poder levantar um bom dinheiro, e ter tempo livre para terminar finalmente a sua peça. Pouco lhe importava que um antigo zelador de lá houvesse matado a esposa e as filhas quando ficou preso lá no período das fortes nevascas. Ele, por mais que o gerente desconfiasse dele, nunca faria isso. Amava Wendy e Danny mais que tudo no mundo. E precisava daquele emprego. Então aceita, sem saber que o que há de mais estranho e inexplicável se escondia por trás das fachadas antigas e silenciosas do hotel nas montanhas.

 

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Embora não queiram aceitar a decisão de Jack, Wendy e Danny são obrigados a concordar por saberem que ele precisa desse emprego. A mãe por motivos que ela mesma não sabe direito explicar. Mas Danny sabe que algo de maléfico se esconde lá dentro do Hotel Overlook, uma Coisa que começa a povoar seus piores pesadelos. Sonhos e pesadelos que costumam ser previsões do futuro. Quando perceber já pode ser tarde demais.

Pode-se achar estranho por uma criança de cinco anos como protagonista de um livro de horror, com mutilações e tudo, mas em O Iluminado funciona à perfeição. Danny é o que alguns podem chamar de paranormal, pessoa com sexto sentido, mas no livro é tratado como um garoto iluminado. Ele sempre aparenta saber o que as pessoas ao redor estão pensando, fala de coisas que não teria como conhecer e só da mãe lembrar, mentalmente, que precisa devolver os livros na biblioteca ele já põe a carteira em cima da mesa. O garoto guarda dentro de si habilidades enormes, que podem ser sentidas a quilômetros de distância.

Um poder mental tão grande que talvez faça dele a pessoa mais iluminada que já pisou na Terra. Lê pensamentos, captura sensações e tem lampejos do futuro e outras capacidades que nem ele mesmo consegue compreender ainda com sua pouca idade, mesmo sendo maduro para uma criança de cinco anos. E agora era o Hotel Overlook. Ele podia se ver lá, sendo encurralado contra a parede, sem saída. Mas a sua saída é ignorar. Afinal nem sempre seus sonhos aconteciam.

 

“Uma porção de gente tem um pouquinho dessa luz interior. Não sabem, mas sempre aparecem com flores quando as esposas estão se sentindo pra baixo, fazem boas provas sem sequer terem estudado, têm uma boa idéia de como as pessoas estão se sentindo logo ao entrar numa sala.”

“O que você tem, filho, eu chamo de luz interior, a Bíblia chama de visões, e há cientistas que chamam de premonição. Já li sobre isso, filho. Já estudei. Tudo isso significa ver o futuro.”

A compulsão de Jack pela bebida já seria suficiente pra gerar um bom livro. Mas Stephen King ainda reúne, além de Danny, o motivador da trama. Uma das formas mais clássicas de provocar medo no leitor. Um mal antigo e de origem desconhecida. Um mal que se encontra num tema que todo escritor de suspense/horror deveria voltar sua atenção pelo menos uma vez: casas mal-assombradas. E não existe nada mais potencialmente sinistro do que hotéis. Falo sério. Quantas pessoas dormiram naquelas camas? Quantas estavam doentes? Quantas planejavam assassinatos ou o suicídio? Quantos morreram de ataque cardíaco ou por outras causas naquele mesmo saguão, na cozinha e nos banheiros? Quanto mais antigos maiores e mais macabros são estes números. E o hotel Overlook não é apenas antigo, como também é cheio de histórias de traições, luxúria, ganância e assassinatos. Um local onde o tempo parece não ter fim. Os acontecimentos ecoam pela eternidade. Dona de inteligência e vontade próprias. E agora surge com tudo.

 

"E no fusca, que subia com mais segurança os aclives menos íngremes, Danny, no meio dos dois, olhava para fora; a estrada desenrolava-se, possibilitando vistas ocasionais do Overlook Hotel, o bloco maciço de janelas voltadas para o oeste refletindo o sol. Era o lugar que vira no meio da tempestade de neve, o lugar escuro do estrondo, onde uma criatura incrivelmente familiar, procurava-o pelos corredores cobertos de mato. O lugar sobre o qual Tony o havia alertado. Era aqui. Fosse o que fosse, REDRUM seria aqui."

“No Overlook tudo tinha uma espécie de vida. Era como se alguém tivesse dado corda no lugar todo, com uma chave de prata. O relógio batia. O relógio batia.”

Estas três coisas trabalhadas lenta e cuidadosamente por King que fazem de O Iluminado um dos grandes livros de horror dos últimos 50 anos. Um horror bem construído, que deixa entrevisto o pior que vai acontecer, mas não como. O romance é como um grande palco de teatro. A cortina abre pouco a pouco, revelando os mistérios que a história aguarda. E então abrir de uma vez só, brutalmente. E não fechar nunca mais. Nem mesmo após a última página. A última linha. Ele é um daqueles livros com mais potencial de marcar seus leitores. Aqueles que alugam e compram casas e nunca se dão ao trabalho de pesquisar o passado da residência.

 

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“A Morte Rubra dominava tudo!”

“Retirem as máscaras! Retirem as máscaras!”

Não fosse ser um terror de alta qualidade, Stephen King nunca esconde a admiração e respeito aos seus precursores. Pessoas que trilharam pelo terror muito antes de ele sonhar em nascer. Há várias menções em sua obra a nomes consagrados como Bram Stoker, Mary Shelley e H. P. Lovecraft em seus livros. Em O Iluminado, Edgar Allan Poe recebe toda a atenção que um gênio da sua envergadura merece. A Máscara da Morte Rubra, um de seus melhores contos, ocupa lugar essencial na trama. Mostra o pior e verdadeiro lado do Overlook. Uma força capaz de despertar terrores mais profundos que o inferno.

 

“Era Poe, o grande nome da literatura americana. E é claro que o Overlook era algo extremamente distante do mundo de E. A. Poe.”

Mesmo homenageando os clássicos, Stephen King recorre a alguns artifícios modernos do gênero para aumentar o clima de suspense/terror. O principal é o isolamento. Quando começa o inverno as estradas são fechadas por causa das fortes nevascas, os telefones ficam mudos e a família Torrance fica presa no Hotel, sem chances de sair por meses. Isso tudo dentro de um lugar que quer a morte de todos lá dentro e não vai medir esforços para alcançar esse objetivo. Uma vitória quase certa, devo dizer. Não é como com os vampiros que só é preciso ter um crucifixo, uma arma (para se defender de animais e de humanos) e se cobrir de água benta. Como combater uma Coisa, um Ser quando se está dentro dele e todos os nossos atos são vistos e ouvidos?

 

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"Este lugar desumano cria monstros humanos.”

O Iluminado foi o primeiro livro de Stephen King a ser best-seller também em capa dura. O sucesso foi tanto que Stanley Kubrick lançaria sua versão da história em 1980, um dos maiores clássicos do cinema. Mas as obras têm diferenças fundamentais entre si. O filme de Kubrick tem algumas cenas idênticas, mas vai seguindo um caminho adverso do meio para o final. O romance é muito mais complexo. Você passa a compreender mais as motivações dos personagens, eles são mais elaborados e alguns trechos dão uma sensação de angústia que você não vê em muito filme bom do gênero por aí.

King consegue nos fazer sentir medo até do mais simples objeto. De uma mangueira de incêndio, de um carro e até de um aparentemente inofensivo gato. Cada página é sinônima de tensão. Um terror psicológico de primeira que faz seu coração acelerar, sua respiração ficar entrecortada e você suar frio. Como não sentir sua espinha gelar com momentos clássicos como a do quarto 217 ou a da topiaria? Mas a  verdade é que tanto o livro e o filme, por motivos e qualidades diferentes, são aulas de como se fazer horror. Ambos são marcas de gênios. Quem tem uma ligação mais forte com o cinema vai preferir a versão com Jack Nicholson em uma das melhores interpretações da carreira. Quem é fã de Stephen King vai eleger O iluminado como um de seus livros favoritos.

Stephen King nunca perdeu uma oportunidade de criticar a adaptação de Kubrick, tendo vários argumentos para desmerecê-lo. Mais tarde, foi lançada uma minissérie baseada em O Iluminado, com uma fidelidade maior.

Tempos atrás Stephen King anunciou numa entrevista que pretendia escrever uma continuação de O Iluminado. Danny já teria quarenta anos e trabalharia em um hospital ajudando os pacientes a irem dessa a uma melhor. O foco estaria nos traumas dele após os eventos no Hotel Overlook. Confesso que poderia ser legal, mas a seqüência é desnecessária. O final de Iluminado já insinua que o garoto viveria uma vida normal a partir dali.

Com O Iluminado, King mostrou ao mundo o potencial que tinha de escrever outros grandes livros como O Talismã e a série Torre Negra. Depois dele um final de semana num hotel nunca mais foi o mesmo.

 

Autor: Stephen King   

Páginas: 582            

Nota: 9,5

7 Comentaram...

Nilto, o Junio disse...

muito bom, melhor post seu que eu li.

Anônimo disse...

Quando eu li o livro, confesso que esperava mais. Apesar dos personagens serem muito bem construídos e toda a trama bem explorada e trabalhada, acho que o suspense e o próprio terror demoram demais para aparecer, e quando aparecem nem chegam a assustar tanto quanto eu imaginei que deveriam.

Não vou desmerecer o livro, porque eu realmente gostei muito quando li. Não consegui terminar de ver o filme por causa do menino que fez o Danny. "Tony é um bichinho que vive na minha boca" arruinou tudo desde o começo. Mas eu, particularmente, acho que o livro poderia ser mais curto. Ele é demasiado extenso e algumas partes realmente são desnecessárias em toda a trama.

A análise foi muito boa, e como não diz muito, acho que é ótimo a incentivar outras pessoas a lerem a obra. Realmente, muito bom o post :)

Cinemarco Críticas disse...

Grande post, escrita clara e direta, parabéns.

Se eu disser que não fiquei com medo lendo o livro, estarei mentindo. Grande obra literária, mas confesso que só fui ler o livro depois de perceber que era apaixonado pelo filme de Kubrick. Ta certo que há várias discordâncias nessa história de livro, filme, King e Kubkick, e até mesmo há leitores que gostam de uma obra e outra não, mas eu curto muitíssimo os dois. hehehe

Thiago Luiz disse...

Discordo quanto ao Tony arruinar o filme.Alias, Danny é carismático, o filme é superior em muitos ao livro. A topiaria de animais do livro,(que foi substituida por um labirinto no filme),foi uma solução que ao meu ver, é uma metáfora da mente do Jack, além de ser uma solução bem mais interessante.
Felizmente o Kubrick(para variar), mudou em muito a história, incluindo final muito mais enigmático e assustador.Mas, reconheço a coragem do King em escrever uma historia semi-autobiográfica.

Adorei a resenha do livro e tenho uma humilde discordância sobre King abandonar às drogas de vez.Quando ele escrevia "Os Estranhos"(1987)ele estava sobre efeito de drogas, tanto que o personagem Gard,e o próprio livro,tem reflexos dessa fase.

Aguardo ancioso Murilo, sua crítica ao livro "Fome de Viver" de Whitley Strieber

Aleatório disse...

Ótimo post, e o livre realmente merece esses elogios.
Eu só acrescentaria o fato de que, segundo as lendas, o plano original era que todos os protagonistas morressem no final mas os editores acharam esse final muito pesado.

Murilo Andrade disse...

@Thiago Luiz
Valeu! De fato tenho bastante vontade de ler Fome de Viver, mas ele é meio difícil de se encontrar pra vender.

Joelma Alves disse...

Murilo, a cada resenha que você faz dos Livros do King me dá mais vontade de ler alguma coisa dele! E você está escrevendo muito bem, parabéns. Eu já sou medrosa por natureza, quando lia muito Agatha Christie já me assustava com qualquer barulho estranho (e Agata Christie não é terror, só um suspense com alguns crimes leves...), imagina lendo livros de terror de verdade! Ui! rsrs
Gosto da quantidade de citações que você coloca nos textos, poucas e nos momentos apropriados. Confesso que quando vejo um trilhão de citações em resenhas simplismente pulo TODAS!
Eu não sabia que o King era alcólatra...

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