terça-feira, 30 de agosto de 2011

Avatar Murilo

A Estrada da Noite

 

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Vou ‘vender’ o fantasma do meu avó pelo preço mais alto.

Jude tinha uma coleção particular.

Tinha desenhos emoldurados dos Sete Anões na parede do estúdio, entre seus discos de platina. John Wayne Gacy, o ‘Palhaço Assassino’, fizera os esboços e os mandara para ele. Gacy gostava tanto da Disney dos anos dourados quase tanto quanto gosta de molestar crianças pequenas, quase tanto quanto gostava dos discos de Jude.

Jude tinha o crânio de um camponês do século XVI, que fora perfurado para os demônios saírem. Guardava um monte de canetas enfiadas no centro do crânio.

A crença em fantasmas, na vida após a morte, é quase tão antiga quanto a própria humanidade e se encontra em todas as culturas do planeta. O passado até então não era tido como algo morto. Muito pelo contrário, ele podia irromper a qualquer momento, feroz e ameaçador. A morte ainda não era a fronteira final, o último obstáculo a ser superado. Os mortos, acreditava-se, continuavam entre nós. Eles podiam retornar para assombrar nosso mundo, pedir ajuda para salvar suas almas ou exigir algo prometido ainda não cumprido. Centenas de milhares de páginas eram preenchidas com a então chamada ciência dos espectros, cadáveres eram desenterrados e condenados por crimes cometidos em vida e rituais eram feitos para garantir que os mortos tivessem uma boa “vida” lá em baixo.

Uma crença tão eterna e marcante como essa, capaz de produzir novos mitos até hoje, não deixaria de ser presença importante na literatura e no cinema. A popularização da literatura gótica e de seus clichês perpétuos (um dia escrevo um texto inteiro só sobre eles) apontaria a figura como o fantasma seria geralmente reconhecido: pálido e imponente, capaz de atravessar paredes, flutuar, gemendo espectralmente. Desde então, tema seria o mais rico subgênero do terror daria as caras em histórias de diversos outros estilos, gerando inúmeras obras-primas. Em 2007, surgiria o último bom livro sobre fantasmas, A Estrada da Noite, pelas mãos de um escritor ainda pouco experiente. Depois do sucesso da premiada coletânea de contos Fantasmas do século XX, Joe Hill alcançaria a consagração com A Estrada da Noite, seu primeiro romance, realizando o feito inédito de ser chamado de mestre já em sua estréia literária.

Como todos os sites e blogs se apressam a avisar aos leitores mais desinformados, Joe Hill é filho do célebre Stephen King. Embora ainda tenha se esforçado bastante para esconder o parentesco, não demorou muito até que a verdade fosse revelada e as comparações viessem à tona. Mesmo não sendo tão bom quanto o pai, ele conseguiu aquela rara emancipação que poucos parentes de pessoas famosas conseguem. Da mesma maneira que Alexandre Dumas (filho), Luís Fernando Veríssimo e Sofia Coppola, Hill gravou seu nome na arte por causa do seu próprio talento. Isso se tornou uma verdade tão grande que as edições de seus livros mal precisam estampar nas capas o nome de Stephen King para que entrem na lista de mais vendidos.

Não fazia sentido o modo como as coisas tinham se desenrolado. Judas Coyne sempre fora o astro; a banda se chamava O Martelo de Judas. Era ele quem devia ter morrido tragicamente jovem. Jerome e Dizzy deviam ter sobrevivido para poder contar, anos mais tarde, numa retrospectiva, 13 histórias selecionadas a seu respeito, (ambos ficando calvos, gordos, com as mãos e unhas tratadas, em paz com sua riqueza e com seu rude, ruidoso passado.)

Os integrantes do My Chemical Romance estavam num talk show na TV. Tinham cabelos espetados e argolas nos lábios e sobrancelhas, mas sob o pó branco da maquiagem e o batom preto havia uma coleção de garotos gorduchos que provavelmente tinham participado, alguns anos antes, da banda do colégio. Pulavam de um lado para o outro, caíam um em cima do outro, como se o palco debaixo deles fosse uma placa eletrificada. Brincavam febrilmente, aterrorizando uns aos outros. Jude gostava dos rapazes. E se perguntava qual deles ia morrer primeiro.

 

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Jude Coyne é um ex-vocalista cinqüentão de uma extinta banda de rock pesado, que vive atualmente apenas da vultuosa renda dos direitos autorais das suas músicas. Mesmo se esforçando para manter a postura durona e auto-destrutiva até mesmo para a sua namorada gótica Geórgia, ele sabe muito bem que seus dias de rockstar já se passaram há muito tempo. Para ocupar suas várias horas livres, cultiva uma bizarra coleção. Comprando em leilões na internet ou ganhando de fãs, Jude guarda em seu estúdio de gravação pequenos objetos macabros. Uma fita snuff, uma caveira da idade média, uma forca, a confissão de bruxaria de uma garota para a Inquisição, entre outros. Um dia, ao encontrar disponível para venda um fantasma preso em um antigo paletó, Jude não pensa duas vezes. Compra-o imediatamente. O que ele não sabia era que o paletó era mesmo assombrado e que ele caiu em uma armadilha.

O fantasma do paletó, Craddock McDermott, um especialista em hipnose, quer vingança. Está louco para matar Jude, que julga ter provocado o suicídio da sua neta, e todos os que ousarem entrar em seu caminho. Então se inicia uma fuga desesperada pelos Estados Unidos, com uma pick-up possuída por um fantasma logo atrás, onde nada jamais é o que parece ser.

Se o inferno fosse alguma coisa seria conversa de rádio - e família.

Nos tempos do colégio ele enfiou a bala de fuzil numa tira de couro e usou-a em volta do pescoço até o diretor confiscá-la. Jude se admirava de não ter encontrado um meio de matar alguém naquela época. Possuía todos os elementos-chave de um estudante atirador: hormônios, angústia, munição. As pessoas não entendiam de que forma algo como Columbine podia acontecer. Jude se perguntava por que não acontecia com mais frequência.

Diferente do pai, famoso por alimentar incansavelmente o suspense em seus livros, Joe Hill prefere contar suas histórias com a sutileza de uma bomba. Em míseras seis páginas, a caixa preta em formato de coração chega, Jude já está com o paletó mal assombrado em mãos, tendo que lutar por sua vida contra um oponente implacável, praticamente invencível. De forma que não chega a surpreender que o romance seja curto, com tantos capítulos concisos. Ao lê-lo, percebe-se que o estilo rápido de Hill não permitiria que fosse diferente.

A Estrada da Noite é o romance do século XXI. Não só pela agilidade que a maioria dos leitores parece exigir hoje, mas também pelo rico panorama tecnológico que faz dos nossos tempos. Todos os personagens (com exceção de Jude) são pessoas extremamente conectadas, usuários fiéis do Google, MSN e email. O fato de o fantasma ser comprado em um leilão virtual não foi à toa. Jude, que faz questão de nunca compartilhar do mesmo interesse pelo mundo digital, chega a comparar os hábitos das pessoas na internet ao de viciados em cocaína. Quando pensamos na quantidade de pessoas se descabelando, irritadas, que precisam verificar seus emails, a comparação nem parece mais tão absurda. De repente, nos tornamos tão dependentes de uma tecnologia que mal pudemos cogitar viver sem ela.

Os fantasmas sempre nos alcançam, é impossível trancá-los do lado de fora. Eles simplesmente atravessam a porta, mesmo que esteja trancada.

Para mim, sempre foi difícil aceitar a idéia de que espíritos iriam querer vagar a esmo por casas abandonadas, assustando qualquer engraçadinho que entre uma delas, quando eles podiam estar no lugar que eles quisessem. Parece-me tão absurdo quanto vampiros passarem suas eternidades indo repetidamente à escola. Joe Hill consegue alterar isso maravilhosamente bem. Seu fantasma ganha um nome, passado e objetivo claros. Craddock assombra Jude apenas porque o seu ódio foi tão grande que venceu todos os limites da morte, da estrada da noite. Para matar Jude, ele é capaz de fazer muito mais que atravessar paredes e flutuar. Controla as freqüências de rádio, as imagens da televisão, influencia sonhos e, pior: utiliza sua experiência com hipnose para subjugar as mentes das pessoas por completo, obrigando-as a fazer o que ele quiser.

 

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Joe Hill, já em seu primeiro livro, demonstra um grande domínio psicológico e habilidade em criar personagens extremamente críveis. Ele não se prende a caracterizações clichês, conseguindo com que cada um deles nos pareça único e real. Jude, por exemplo, foge completamente do papel do típico mocinho. Ele é um canalha autodestrutivo em muitos aspectos, traindo os companheiros de banda e largando a garota que amava no momento em que ela mais precisava dele. O realismo dos personagens chega a influenciar os diálogos, sempre cotidianos e realistas, passando longe do pacotão de frases de efeito a que muitos escritores recorrem.

A Estrada da Noite é um dos muitos romances que enfocam o mundo do rock e, como não poderia deixar de ser, Joe Hill se diverte bastante enchendo a história com diversas referências ao heavy metal e ao punk. O título do livro em inglês, por exemplo, é o mesmo de uma música do Nirvana e cada parte do livro tem o nome de uma canção de rock.

O som dos banjos dos Ozarks, da música gospel deu-lhe uma sensação de prazer. Sentiu-a subir pelos antebraços e pela nuca. Muitas de suas canções, quando começavam a brotar, soavam como músicas antigas. Chegavam assim à soleira da sua porta, como órfãs sem rumo, como crianças perdidas de grandes e veneráveis famílias musicais. Chegavam a ele com o som de piano dos ragtimes e dos blues no Tin Pan Alley ou dos empolgantes riffs de Chuck Berry. Jude as vestia de preto e as ensinavaa gritar.

Mas, apesar de tudo, A Estrada da Noite não é exatamente a perfeição que algumas pessoas parecem considerar. Em meio a tantos quilômetros percorridos na fuga por Jude e Geórgia (A Estrada da Noite é um verdadeiro road book de horror), Joe Hill parece deixar claro que seu objetivo é transformar a jornada dos protagonistas em uma oportunidade de redenção. O problema é que Jude e Geórgia continuam praticamente os mesmos no fim da história. A única diferença em relação ao começo é que agora os conhecemos melhor. Isso transforma o desfecho da história em uma solução bastante insatisfatória, destoando completamente do que se esperaria daqueles personagens e de uma história que enfoca temas densos como abuso infantil e mutilação.

Entretanto, A Estrada da Noite ainda consegue ser um dos principais lançamentos do horror dos últimos anos. Mesmo sendo um gênero tão popular, a verdade é que bons escritores de terror são muito difíceis de encontrar. É por este motivo que os fãs receberam a estréia de Joe Hill com tanto entusiasmo. Ele consegue provar aqui que é mais que só bom. É um novo e necessário sopro de modernidade.

Autor: Joe Hill

Páginas: 254

Preço: R$ 29,90

Editora: Sextante

Nota: 7,5

5 Comentaram...

Caidól disse...

Eu já tinha lido, achei bem legal! É o tipo de personagem que sobrevive no fim por um milagre!

Nilto, o Junio disse...

Livrão, li em dois dias (meu recorde). Só tenho a dizer que, Jude não deveria mudar mesmo não, a grande bola peluda de fazer rock que aparece no início do filme devia ser a mesma do fim, o grande lance que eu achei (além do rítimo frenético do terror do livro) foi justamente mostrar a fragilidade por dentro do cara sem que ele deixasse de ser fodão e o rock star que todos conhecem.

Joelma Alves disse...

Eu (sempre muuito bem informada) só soube que o Joe Hill era filho do King depois de ler a Estrada da Noite. Não sei se saber disso antes seria um fator positivo pro Joe, já que tive meus probleminhas com o King, os quais espero solucionar em breve lendo Carrie e O Iluminado (esse último comprei depois da sua resenha aqui no NSN).
Você falou do estilo rápido do Joe Hill, realmente! Me lembrou o Markus Zusac, com seus parágrafos curtíssimos...Só que o Joe coloca muuitos palavrões nesses parágrafos, e mesmo eu não sendo a grande defensora da moral e dos bons costumes, demorei algumas páginas para me acostumar com esse estilo (que se repete em O Pacto).
Quanta a coletânia Fantasmas do Século XX, não gostei, alguns contos são realmente bons, mas a maioria parece que está lá apenas para completar um número pré-detreminado.
Enfim, como dizem por aí, Joe Hill pode até começar a escrever bula de remédio que eu leio. Apesar de seus livros não serem completamente perfeitos, é um autor excelente e que merece ser lido. Além do fato que ele é jovem e ainda não morreu (!), então teremos muitos de seus livros pela frente (assim espero).

Murilo Andrade disse...

@Joelma Alves

E essa é a coisa que mais me agrada nele. Poder acompanhar a evolução dele nos seus romances posteriores =D

Anônimo disse...

Esperando o dia em que o Murilo fará a resenha do livro O Pacto(também de Joe Hill). Muito boa a história.

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