quinta-feira, 9 de junho de 2011

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Convulsões sociais contemporâneas: a revolta no século XXI

Por Agostinho Torres

 

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#SpanishRevolution (Foto por YguerreraPhotographer)

“Educar para a liberdade só pode significar uma coisa: ajudar os homens a educarem-se a si mesmos para a liberdade, pois não se pode impor a liberdade.”

Herbert Marcuse

 

A violência mais uma vez se converte na sociedade civil brasileira, através de batalhões policiais especiais, em instrumento de controle contra segmentos considerados momentaneamente como “subversivos”: estudantes, professores, usuários de cannabis, artistas de rua, bombeiros, policiais civis, médicos, entre outros trabalhadores que se mantém em greve, reivindicando por melhores condições de trabalho ou se rebelam contra o sistema social vigente.

No ambiente internacional o clima não é muito diferente, verdadeiras guerras santas pela “democratização” do oriente médio são financiadas militarmente pelo Ocidente e como que por um tiro que saiu pela culatra inspiram idealmente, pela coragem com que os rebeldes enfrentam o status quo amparado pelo Estado, a revolta da juventude em países da Europa que passam por crises totalmente diferentes da do Oriente Médio. É o caso das manifestações ocorridas na Espanha, lutando por uma democracia real, que têm como foco principal a crítica às medidas de rigidez econômica impostas pela União Européia e corrupção do governo. Os manifestantes espanhóis gritam: “Não somos mercadoria nas mãos de políticos e banqueiros”, almejando deixar claro que o povo espanhol não é sem voz, nem são apenas estatísticas manipuladas pelo governo e muito menos capachos da UE. Essas medidas de austeridade prevêem necessariamente para sua plena execução o aumento do desemprego, congelamento dos salários, entre outras coisas.

Em Portugal, outro país afetado por medidas da UE, o manifesto da autodenominada Geração à Rasca diz: “Não protestamos contra as outras gerações. Apenas não estamos, nem queremos estar à espera que os problemas se resolvam. Protestamos por uma solução e queremos ser parte dela”. Uma manifestação semelhante acontece na Grécia, reunindo constantemente milhares de pessoas, conseguindo reunir até 24 mil pessoas na Praça Syntagma, principal da cidade de Atenas. Essas manifestações embora contem com líderes sindicais e membros de diversos partidos avessos ao governo, não são hierarquicamente controlados pelas forças políticas da oposição tradicionais, muito pelo contrário, a grande massa é composta por jovens que usaram das redes sociais como ferramenta de mobilização. Twitter e Facebook permitiram não apenas o agrupamento de pessoas, mas também que as manifestações que seriam praticadas fossem previamente planejadas, como é o caso do movimento Toma a praça que chegou a ocupar 33 praças por toda a Espanha em uma campanha orquestrada pela internet. Na França, país que não passa pela dificuldade relacionada com as medidas da UE, centenas jovens em solidariedade com os movimentos recorrentes nos países citados se reuniram numa batucada na Praça da Bastilha em Paris, até que foram dispersados pela policia especial parisiense.

 

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#geraçãoàrasca (Foto por JoaoLC)

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#greekrevolution (Foto por igkros)

No Brasil, numa conjuntura completamente diferente dos países europeus e do Oriente Médio, tivemos a Marcha da Maconha, na qual usuários e outros sujeitos da sociedade civil pediram a abertura do debate sobre a descriminalização da cannabis. A marcha aconteceu em diversas capitais dos estados brasileiros, na cidade São Paulo foi reprimida com violênciapela policia após ser proibida um dia antes por liminar da justiça. Toda essa situação acabou servindo para reunir um contingente rebelde na semana seguinte sobre o nome de Marcha da Liberdade, contemplando o direito de expressão das minorias, tudo aconteceu de forma pacífica graças ao número elevado de pessoas que compareceram. No Espírito Santo ocorreu o Protesto em Vitória, no qual estudantes reivindicavam contra o aumento do preço das passagens de ônibus e pelo direito do passe livre obstruindo avenidas da cidade, graças a repressão policial brutal no primeiro dia, que chegou a jogar bombas de efeito moral dentro da Universidade Federal do Espírito Santo onde os estudantes se refugiavam, 24 horas depois na segunda manifestação compareceu um contingente gigantesco de pessoas e a policia não pôde conter.

 

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#marchadamaconha (Foto por ap [])

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#marchadaliberdade (Foto por Bacellar)

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#protestoemvitória (Foto por Izaias Buson)

Em pouco mais de uma semana, rebeliões juvenis distintas ocorreram em todo o mundo, todas de alguma maneira ligadas ao uso das redes sociais. Aconteceram protestos na Espanha, Portugal, Grécia, França e Brasil. O que me faz pôr todas essas manifestações no mesmo saco? Embora algumas já ocorressem há muitos anos, ganharam novo fôlego sensivelmente com o exemplo de coragem dos rebeldes da onda revolucionaria que está varrendo o Oriente Médio.

Primeiramente digo que o uso estável de redes sociais se individualiza como uma das ferramentas mais importantes dos rebeldes do novo século; em seguida temos a violência com que foram reprimidos pelo aparato policial; e por último o renascimento de uma noção individualidade crítica que deveria ser a base de uma verdadeira democracia e que é constantemente soterrada por uma democracia-representativa. Usarei esses três pontos para analisar a cultura de protesto do século XXI.

***

Pessoas invadindo praças e montando acampamentos. Marchando nas ruas em nome da liberdade de expressão, do debate perspicaz sobre uso de certas drogas, pela diminuição do preço da passagem de ônibus, pelo passe livre para os estudantes, contra o preconceito. Invadindo reitorias pedindo a saída do reitor-ditador. Gritando um basta para um governo corrupto. O interessante é que não são somente grupos isolados e nem apenas oposição partidária ao governo, são centenas e até milhares de pessoas, somando um número espantoso! A mídia não diz nada, é como se coisa nenhuma estivesse acontecendo. Tropa de choque, correria, bombas de efeito moral, balas de borracha, pedradas dos estudantes na polícia, gritos, prisões, dezenas de pessoas feridas, cavalaria, barricadas, policiais correndo atrás de estudantes, invadindo universidades para capturar estudantes, spray de pimenta, violência dispensável. Vândalos, baderneiros ou vagabundos que impediam a existência habitual na cidade, dizem os jornais da cidade no outro dia.

Essa descrição do parágrafo anterior é próxima a como se apresentam nos livros de história os protestos ocorridos no mundo ocidental que culminaram no maio francês de 1968 e se seguiram a ele! Quem imaginou que isso poderia ocorrer no século XXI? Os paralelos são inevitáveis! Algumas pessoas em conversas informais que tive sobre o assunto vêm comparando as manifestações que tem ocorrido sucessivamente por todo o globo com 68 e seus desdobramentos. Certas coisas realmente não há como negar a semelhança: é um movimento descentralizado (ou seja, apartidário) e espontâneo que tem abrangência principalmente entre a juventude, ganhando um aspecto de anarquia; reivindicam o direito do individuo controlar a própria vida; colocam em xeque a democracia representativa que o ocidente tanto se orgulha de ter e disseminar para o resto do mundo; além de demonstrarem as contradições existentes entre leis e tratados e as práticas repressivas do Estado (que é muitas vezes amparado por instituições privadas).

Estas características são universais para as rebeliões de cunho radicalmente libertário. Porém não podemos reduzir o que vem ocorrendo, desde mais ou menos 2000 e está se tornando mais latente neste ano de 2011 em uma ressurreição de 68, muito pelo contrário, essas manifestações de 2011 são de um cunho próprio e luta pela liberdade do indivíduo e fim dos abismos sociais agora ocorrem com ferramentas próprias de nosso período histórico. A ironia, irreverência, organização e lista de reivindicações são típicas de nosso tempo, de nossas crises e por isso absolutamente inéditas na história.

***

O uso das redes sociais tem sido vantajoso em diversos momentos históricos para se fazer circular datas de protestos ou mesmo aparelhar movimentações subversivas das minorias sociais que não tem poder sobre a grande mídia. Há ainda a possibilidade de fazer com que vídeos, que antes seriam censurados pelos empresários das redes de televisão ou pelo estado que tem controle direto dos meios de comunicação como parte de seu aparelho repressivo, sejam vistos em todo o mundo. Basta um celular qualquer, com uma câmera mesmo ruim, e acesso a internet para se lançar na internet fotos, vídeos e notas.

O protótipo dos atos rebeldes através das redes sociais foi o uso de celulares em 2001 na Filipinas para troca de mensagens de texto com objetivo de arquitetar manifestações de massa solicitando o impeachment de Joseph Estrada, que terminou tendo o resultado almejado. O impeachment não aconteceu exatamente pela estratégia das mensagens de texto, mas ela teve também sua parcela de assistência.

A atual perspectiva de protesto começou a se construir mais solidamente em 2009 no Irã durante a contagem dos votos das eleições vencidas por Mahmoud Ahmadinejad, na qual fizeram circular pela internet informações de fraudes nas apurações das urnas, informações essas que eram maquiadas pela mídia local. Depois diversas manifestações foram organizadas pela internet. Dados de protestos, marchas e levantes eram vinculados no Twitter e Facebook, fazendo o movimento ganhar abrangência mundial e não apenas regional, levando milhares de pessoas às ruas do Irã para reivindicar seus direitos. Vídeos de confrontos com as forças militares e das violências aos quais os civis eram expostos por se expressarem livremente, foram veiculados no YouTube com auxilio do Google, colocando a opinião publica internacional contra o país. O saldo foi o bloqueio de diversos sites, expulsão de jornalistas estrangeiros, prisão de oposicionistas que usavam a internet como principal mídia e a censura mais rígida à imprensa como um todo por parte do governo, demonstrando que a falta de controle sobre a internet é perigosa para um Estado que se quer autoritário, pois não é fácil de se controlar o fluxo de dados.

O fato é que nenhuma sociedade gosta de ser posta em questão independentemente da sua forma de organização política, e a internet é um meio relativamente seguro de se fazer oposição, de divulgar as contradições internas por trás do belo discurso de estabilidade, segurança e desenvolvimento que o Estado costuma improvisar. Há na internet a possibilidade de navegação anônima, que impede os órgãos repressivos de localizar e punir os rebeldes. E no caso, por exemplo do Irã, em que os jornalistas estrangeiros foram expulsos do país, a internet é a última alternativa de conexão dos cidadãos do lado de dentro com o mundo externo, onde divulgam fotos, textos e vídeos que em outras mídias seriam proibidos. Embora o governo iraniano tenha bloqueado o acesso a certas redes sociais, como também faz o governo Chinês, as pessoas sempre arrumam estratégias para burlá-los, circulando o material comprometedor que o governo deseja coibir.

Outro exemplo iluminador da questão foram as revoluções ocorridas no Oriente Médio, que teve uma importante peça de sua estrutura previamente delineada no Facebook. Por um lado não podemos ir ao extremo da situação ao afirmar, como fizeram os principais veículos da imprensa mundial no começo do ano, que as redes sociais por si “revolucionaram” o Oriente Médio, por outro lado não podemos ignorar a decisiva influência que elas tiveram nas ações revolucionárias. Inspirados na queda do ditador Zine El Abidine Ben Ali da Tunísia, a população do Egito foi às ruas clamar pelo fim do regime de Hosni Mubarak que já durava 30 anos e enfrentou seus simpatizantes numa guerra civil. As redes sociais serviram mais uma vez de comitê de organização dos movimentos. Através dos celulares as manifestações foram filmadas e transmitidas ao vivo na internet, tornando mais uma vez o protesto numa questão global em que de diversos países artistas e pessoas comuns apoiavam mandando mensagens de expectativa e denunciando violações dos direitos humanos, no intuito de que os países ligados à ONU interviessem no país. A censura egípcia era severa, nas redes sociais os cidadãos ganhavam uma liberdade de expressão incomensurável e tinham a possibilidade de comunicação com milhares de pessoas de uma vez só. A reação do governo antes de cair foi bloquear as redes sociais e as operadoras dos celulares, até finalmente interromper a internet integralmente.

 

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“Geração à rasca” usando símbolos do Facebook em protesto (Foto por Alatryste)

Situações particulares que antes ficariam restritas ao plano local e desta forma seriam desbaratadas facilmente pelo aparelho repressivo militar através da violência e intimidação, tomam presentemente com a internet, proporções globais e irreprimíveis. Um vídeo de um assassinato feito de forma fria pela policia, causa choque nos ocidentais se feita em qualquer lugar do mundo, seja no Brasil, EUA, Irã ou China, esse é o caráter globalmente reivindicador da internet. Ela conecta-nos numa verdadeira aldeia global como previra Marshall McLuhan, não através do fim das fronteiras nacionais, mas por que percebemos que somos todos humanos, criando uma identidade planetária.

Os governos, sejam autoritários ou pseudo-democráticos, graças a internet não podem mais esconder suas práticas, e as contradições se tornaram mais latentes tanto para os próprios cidadãos do país – o que configura como auto-conscientização dos problemas internos - quanto para a opinião pública internacional, pois as informações são veiculadas por centenas/milhares de fontes em blogs e não apenas por uma ou duas emissoras com relações estreitas de dependência com o Estado.

Movimentos libertários e independentes que usaram as redes sociais para exigir justiça, abertura de debates e garantias de direitos numa democracia mascarada, ocorreram no Brasil com a Marcha da Maconha, Marcha da Liberdade e a Manifestação dos Estudantes no Espírito Santo pela diminuição da passagem de ônibus e passe livre, nomeado de Protesto em Vitória. O principal meio de divulgação desses protestos foram as redes sociais e sites particulares, além é claro, do reforço dos cartazes e faixas nas ruas. Assim como nos países autoritários, no momento em que o Estado mandou policiais para reprimirem as manifestações, a população civil estava lançando fotos, mensagens e vídeos do que acontecia para o mundo através da internet. A Marcha da Liberdade e o Protesto em Vitória, puderam ser acompanhadas ao vivo pela internet, em que no caso do primeiro dia desta última, dava para se ver em tempo real bombas de efeito moral explodindo e policiais dando tiros de bala de borracha.

***

Como historiador que sou, me recuso a considerar por um momento sequer que a verdade e o regime jurídico no qual vivemos são eternamente imanentes e ideais. Estamos dentro de uma circunferência histórica, localizados dentro do tempo-espaço e por isso limitados nas formas através da qual podemos ver o mundo, tendo em decorrência nossas experiências individuais e construções culturais que nos foram circunscritas. Toda verdade é invariavelmente histórica e é uma edificação permeada de interesses e conflitos. Como bem salienta o historiador francês Paul Veyne: para além das ideologias, todas as filosofias e ciências são elas mesmas históricas e não universais como se quer fazer parecer.

Nada é mais complicado do que os sistemas de leis de um país e também nada transporta uma carga tão intensa de conflitos de classe e perspectivas individuais. O sistema jurídico é uma construção, a constituição, medidas provisórias, estatutos e regimentos são carregados de interesses que querem se perpetuar e venceram, ao serem assentados como regimes de lei, outras idéias que se propunham como alternativas em certo momento histórico.

A individualidade crítica ao qual me refiro que esses movimentos trazem de volta é justamente uma negação das verdades, sejam elas jurídicas, científicas ou filosóficas do seu tempo histórico presente. É o despertar dos homens para a tese de que eles são os construtores de sua cultura e de sua moral, e que por isso também podem, quando se vêem como sujeitos históricos, mudar o fluxo do rio que é a sociedade! É o além do bem e do mal nitzscheano, a razão negativa marcuseana, o Eros freudiano, dialética marxista e devir pós-moderno. A humanidade, da qual o homem é um átomo, é constituída pela história e não por providência divina, então pode ser outra coisa amanhã caso as pessoas do hoje queiram que seja e lutem por isso!

 

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Manifestante da #marchadamaconha queimando a Constituição (Foto por Armando de Lima)

A idéia de revolução está de certa maneira superada na nossa sociedade global atual. Primeiramente porque é diretamente atrelada a idéia de comunismo, que por ter falhado (não falhou porque nunca existiu, mas esse é o argumento dos neoliberais) no século passado se tornou inacreditável para a juventude do novo século. E também porque a esquerda passou a fazer parte da democracia-parlamentar, perdeu há muito tempo a necessidade revolucionária tomando rumos reformistas, entrando no xadrez de jogadas marcadas das eleições. Isso ocorreu porque os sindicatos que antes lutavam por um comunismo, acabaram sendo incorporados ao Estado, já que os trabalhadores passaram a ter a sua construção moral e cultural de forma semelhante aos que os sobrepujam. A mentalidade do trabalhador é a mesma do patrão, podemos perceber isso ao notarmos que o empregado quer apenas um dia conseguir ser ele mesmo o patrão para mandar em outros empregados, então se rebelar contra ele é se rebelar contra si mesmo e isso na maioria dos casos é impraticável.

No presente momento histórico em que vivemos não posso imaginar um partido político que em pouco tempo não seja vítima da corrupção e que não desviem os belos discursos de suas cartilhas, que visam uma melhoria dos abismos sociais, por meramente vencer as eleições a qualquer custo, ignorando as ideologias e fazendo coligações absurdas por causa de conjunturas políticas. Basta ligarmos a TV e vermos as trocas de cargos que ocorrem no governo Dilma e fica claro que para a política partidária o fundamental não se trata de melhorar o país para as pessoas, mas de se manter no poder a todo custo nem que isso custe ignorar as diretrizes que fundaram o partido. São trocas de favores, vendas de votos, enfim, os políticos que estão ligados a partidos tratam a população brasileira como mercadoria, como estatística pura! Por isso costumo dizer que partidos políticos são verdadeiras máfias organizadas, com um sistema interno de burocrácia-autoritária complexa e que dificilmente serão vencidos.

Durante a redemocratização do Brasil, que culminou com a constituição de 1988, uma das propostas mais polêmicas era a de que pessoas isoladas, fora de partidos políticos, poderiam se candidatar nas eleições. Claro que não foi aprovado, seria dar muito poder aos indivíduos e desestruturaria os antigos partidos que queriam reconstruir sua influência perdida com o bipartidarismo da ditadura militar. Nos países democráticos as únicas formas consideradas juridicamente justas de manifestação são as parlamentares! Que na verdade funcionam dentro das regras burocráticas sociais, o que imediatamente imobiliza qualquer possibilidade de mudança.

O que eu quis dizer com tudo isso é que os indivíduos têm o direito (não o jurídico, mas uma espécie de direito espontâneo, o direito natural à Desobediência Civil de que nos fala Henry Thoreau) de se manifestarem contra certas injustiças, sejam minorias ou não e sejam eles mesmos de partidos ou não. Como diz Herbert Marcuse em um artigo sobre revoluções, é desumano não protestar contra certas coisas! Digo isso porque quando há uma manifestação que, por exemplo, ocupa uma avenida inteira do centro de uma cidade, surgem instantaneamente centenas de juristas de plantão indignados com a falta de respeito dos manifestantes ao direito de ir e vir das pessoas. Citam frases feitas como: “a liberdade de alguém termina onde a do outro começa”. Caluniam as pessoas, dizendo que os manifestantes/grevistas são baderneiros, vagabundos, que não buscaram medidas legais, querem só fazer confusão. Etc. Etc.

Primeiramente eles esquecem o aspecto filosófico das leis, que nos deixa evidente que um julgamento é justamente uma análise sobre em que circunstancias as leis foram infringidas! Ou seja, a lei não existe por si só, precisa ser vista de forma histórica. Em que situação esses “baderneiros comunistas, que não tem o que fazer” impediram o ir e vir desses outros cidadãos que não concordavam com o protesto? Seguir a lei tal qual ela é posta nos documentos, sem identificar o contexto de aplicação, é uma atitude fascista, ninguém seguia mais a lei exatamente como era proposta no papel, do que um nazista ou stalinista! Se as leis nunca tivessem sido questionadas FORA de suas regras, viveríamos até hoje numa situação mais obscura na questão das liberdades individuais do que a Idade Média. Os civis podem e devem propor o debate, isso é uma verdadeira democracia.

 

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Manifestação contra a TV espanhola na #spanishrevolution

Outra coisa que esses juristas de plantão esquecem é que esses movimentos que reúnem milhares de pessoas nas ruas, ou invadindo praças, não são construídos do dia para a noite. Há sempre tentativas de dialogo com as autoridades de forma não tumultuosa, como o envio de memorandos e ofícios protocolados. No entanto, nunca o diálogo é feito do outro lado para as pessoas, ou as autoridades questionadas mandam notas informativas simplesmente dizendo não. De forma básica: o aparato jurídico brasileiro não dá espaço para dialogo entre indivíduos de comunidades e as autoridades gestoras, se não por meio de instituição partidárias tal qual a câmera de vereadores. Se considera que o vereador representa por si só a voz dos habitantes da cidade, os deputados a voz do estado e assim por diante, como se o processo eleitoral brasileiro fosse consciente ou mesmo como se a democracia representativa tal qual temos fosse funcional.

Ninguém na verdade gostaria de sair de casa, se preparar psicologicamente pra apanhar da policia, levar gás na cara e encarar gente ignorante nessas manifestações. Não se enganem ao acreditar que alguém gosta desse tipo de tumulto em si. Porém ocupar praças ou a avenida central de uma cidade, é uma estratégia válida para chamar a atenção da mídia para injustiças cometidas e forçar um diálogo com as autoridades. Ocupar prédios, como a reitoria de uma universidade também, independente se juridicamente é aceitável ou não! São atitudes de indivíduos que se reúnem livremente para reivindicar ou debater sobre mudanças nas leis ou denunciar situações que são silenciadas pela mídia, sistema judicial e outras instituições.

***

É inquestionável o fato de que leis injustas existam. Como examina Thoreau “devemos contentar-nos em obedecer a elas ou esforçar-nos em corrigi-las? Obedecer-lhes até triunfarmos ou transgredi-las desde logo? Num governo como este (democrático), os homens geralmente pensam que devem esperar até que a maioria seja persuadida a alterá-las. Pensam que, se resistissem ao governo, o remédio seria pior que o mal”. Pois bem, se o remédio é pior que o mal em si, a culpa não é das minorias que se manifestam, mas do governo que por trás de seus escudos burocráticos tenta se manter intacto a todo custo! O problema maior reside no fato de que numa sociedade democrática parlamentarista não exista um mecanismo de manifestação espontânea do povo que não seja a revolta, o protesto, a manifestação! É o problema da democracia representativa que não passa de um teatrinho de nobres e como se autodenomina, representam de forma meramente simbólica os interesses sociais imediatos.

Como dito em outro momento do texto, nenhuma sociedade gosta de ser posta em questão, por isso o Estado (que pode estar defendendo interesses próprios enquanto instancia máxima do país/estado/cidade ou interesses de grupos privados que lhe lideram) tem um aparelho de repressão intricado que funciona em várias etapas sincrônicas. Há primeiro a tentativa de intimidação física com os exemplos da repressão a manifestações passadas e a intimidação jurídica através da exibição de leis que garantem a ilegalidade das manifestações, como foi o caso da liminar proibindo a Marcha da Maconha ou a ocorrência legal de que não se pode interferir no direito de ir e vir dos outros cidadãos (leia aqui sobre a censura amparada pela lei). Se segue então a repressão física, na qual após ser amparado juridicamente, o Estado manda a polícia dispersar a manifestação. A polícia usa de bombas de efeito moral, balas de borracha, cavalaria e spray de pimenta para isso, armas “inofensivas” apenas porque não são avaliadas como mortais, que no entanto podem ser extremamente perigosas nas mãos de brutamontes como as policias especiais brasileiras. E a última e não menos importante parte do aparelho repressivo: amparados pela legalidade jurídica as autoridades mandam notas à imprensa declarando imenso pesar pelo fato de que vândalos, vagabundos, “pessoas sem ter o que fazer” e subversivos anarquistas tenham infringido a lei, justificando assim para a população a medida de repressão contra os “anarquistas radicais”.

Este último aparato é a manipulação da imprensa, que com o uso das redes sociais nos dias de hoje, foi enfraquecido, porém a maioria da população ainda recebe informações pelas antigas mídias como jornais impressos e TV. Entretanto, já é um grande avanço termos manifestantes transmitindo ao vivo via internet imagens/vídeos/informações dos protestos, como foi feito na Marcha da Liberdade (SP), Protesto em Vitória (ES), Grécia, Espanha e Portugal. Tive o desprazer de poder ver em tempo real policiais perseguindo estudantes, bombas de efeito moral explodindo no meio dos manifestantes e gente levando tiro de borracha. A polícia nessas situações acabou se mostrando completamente despreparada para tratar protestos de cunho evidentemente democráticos e pacíficos.

 

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Repressão à #marchadamaconha (Foto por Bacellar)

De forma imediata a repressão policial é prejudicial para integridade física dos manifestantes, no entanto a mais nociva e que se espalha a longo prazo na mente das pessoas como um vírus em um corpo social saudável, é a repressão midiática. Com a difamação dos movimentos sociais a população comum, que na verdade seria contemplada caso as propostas das manifestações fossem atendidas, fica contra as manifestações, tirando seu respaldo popular. São aquelas pessoas que você vê na parada de ônibus chamando os estudantes que estão se manifestando de vândalos ou xingando os vagabundos dos grevistas que atrapalham suas vidas! Que agressão esses vândalos e vagabundos causam a vida dos outros cidadãos! Graças ao boom da internet existe uma contra-informação, que trata de mostrar o outro lado da questão para essas pessoas.

É interessante notar que num país que remunera mal quase todas as profissões, o ato de fazer greve é visto como “vadiagem” de “preguiçosos que não querem trabalhar”. A ironia reside no fato de que lutar por melhorias de condições de trabalho e de aumento de salário são agressões, enquanto o fato de remunerar mal, não preparar o trabalhador e não lhe dar condições mínimas de trabalho não são agressões. Ou melhor, são consideradas violências inevitáveis, sempre foi assim, porque é que vai mudar? O trabalhador que se vire, ele é mal pago pra isso, mas é pago, tem que trabalhar! Já os intelectuais escrevem livros sobre a cultura de corrupção dos brasileiros desde a colonização e justificam assim que faz parte da identidade nacional o mau caratismo, o descaso com educação, saúde e segurança.

A piada fica completa quando se lembra que as greves precisam... ser aprovadas pela justiça, porque a cidade não pode parar de funcionar, embora todos os trabalhadores dela possam passar fome ela não pode parar, então as greves tem que ser avaliadas por um juiz, que faz parte do esquemão judiciário corrupto governamental e que de antemão vai decretar ilegalidade. Quando o juiz não decreta ilegalidade, é só uma questão de tempo, nenhum juiz vai manter uma greve como legal por meses a fio.

 

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Repressão à #spanishrevolution

Não se chama de violência a ocupação de morros, desemprego, a devastação de milhares de quilômetros de mata nativa, torturas, pobreza, degenerações patológicas causadas pelo trabalho, pessoas morrendo em filas de hospitais, milhares de pessoas que não podem entrar na universidade por causa de vestibulares, entre tantas outras degradações que ocorrem no atual sistema capitalista, no entanto é violência protestar contra as violências enumeradas. Pois que seja violência! No entanto não podemos de modo algum igualar essa violência com a violência emanada pelo estado, pelo contrário, é violência necessária causada por ele!

 

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Repressão ao #protestoemvitória (Foto por Izaias Buson)

Se uma manifestação tem que ser feita, parando parte da cidade, infringindo o direito de ir e vir do cidadão, a culpa não é dos manifestantes que estão lutando simplesmente para serem ouvidos, mas do governo que não ouve! Se os revoltosos apenas se reunissem aos milhares numa praça para gritar contra o governo, manifestar suas desavenças e assinar abaixo-assinados, as autoridades poderiam simplesmente fingir que nada aconteceu, que não receberam nada e ficaria por isso mesmo, como por muitas vezes acontece. Por isso é necessária sim a paralisação de setores sociais, que prejudiquem de alguma forma a sociedade, para que ela abra os olhos e tome nota do que está ocorrendo.

Tudo isso que venho descrevendo me faz constatar que vivemos realmente numa sociedade de Contra-revolução permanente, como dizia o sociólogo frankfurtiano Herbert Marcuse. Os aparelhos jurídicos, midiáticos e policiais através dos quais a repressão estatal funciona quer impedir a todo custo qualquer tipo de manifestação que coloque em cheque sua moral e as leis da sociedade, é uma coletividade predominantemente preventiva que teme sabe-se lá que mudanças, ou em outras palavras, uma sociedade que se tornou paranóica com rebeliões e portanto não sabe atender aos requisitos básicos de uma democracia. Não há de fato uma situação revolucionária em nenhum lugar do mundo hoje, como também não existia no final dos anos 60, no entanto com medo dessa revolução fantasma o Estado quer cortar o mal pela raiz usando da violência física.

 

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Cartaz de protesto da “Geração à rasca”

O que acontece na atual conjuntura histórica é que as repressões a esses movimentos, graças à militância virtual, que veicula na internet em tempo real imagens/vídeos/informações dos protestos, tem tido efeito contrário ao desejado. Ao invés de intimidar a população a não sair de casa, as imagens e vídeos que registram o uso excessivo de violência e do desmascaramento da hipocrisia midiática – que em outra situação simplesmente omitiria que algo tivesse acontecido-, fazem centenas e mais centenas de pessoas se indignarem com a situação e compareçam no dia seguinte as ruas, engrossando fileiras e mais fileiras de manifestantes. Essa massa força a polícia a limitar o grau de violência que irá usar, tendo em vista que a sociedade por inteira passa a esperar o que vai acontecer. Não apenas a sociedade do país em questão, mas a opinião publica internacional como um todo.

Repito: não estamos sequer perto de uma situação realmente revolucionária, essas manifestações que vem ocorrendo no mundo todo são sintomas de rebeliões relacionadas a diversas questões da democracia representativa e ao renascimento de uma individualidade crítica. Muita coisa ainda está para acontecer, há um protesto pan-europeu marcado para o dia 19 de Junho, que provavelmente vai mostrar os rumos europeus dessa rebelião! Vamos esperar e ver em que bagaça esses protestos tão diferentes e tão próximos vão dar.

6 Comentaram...

Renato disse...

Caro Pessoal do Ned Somos Nozes, qual a opinião de vocês sobre o movimento Zeitgeist?

http://movimentozeitgeist.com.br/

Alessandro Soledade disse...

Hehehe, fica até difícil de comentar, o mano falou tudo.
Por mais forte que sejam o Estado, a mídia e a lei, eles não são páreos contra a força da população. Nem em esforço mútuo.
Esse texto quebra os grilhões que o sistema nos prende, parabéns!

Lars disse...

Por mais que existam comentários no sentido de que nós seres humanos estamos indo para o ralo, acredito que ações como essa comprovam exatamente o contrário. Estamos sempre nos transformando, e por mais lenta que seja essa mudança, acredito nela.

Parabéns pelo texto!

Ana Recalde disse...

Tirando alguns pontos sobre a democracia representativa e os partidos políticos (que não concordo com o autor), aplaudo seu post!

Ele foi extremamente relevante, necessário que todos vejam e tenham acesso a informação. Tivemos no Peru a marcha contra Keiko Fujimori, #26M, enfim... feito pelas redes sociais também.

É importante analisar sem essa fachada conservadora que nos empurram guela abaixo há tantos anos.

Parabéns pelo seu post!

Panthro disse...

Muito bom o texto, parabéns!

Juane Vaillant disse...

Realmente, falou tudo.
O texto está enorme, então não sei se discordo de alguma coisa, mas acho que não. Eu realmente acredito que todos esses protestos que vem acontecendo tem uma ligação. As pessoas estão cansadas de esperar. As melhorias nunca vem, os problemas não são resolvidos e alguém tem que fazer alguma coisa. Não sei se o protesto aqui de vitória vai dar em alguma coisa, mas pelo menos serviu pra acordar a galera e começar a pensar sobre outras coisas que precisam ser mudadas.

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