quarta-feira, 10 de novembro de 2010

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Fragmentos da História da Repressão Político-Estatal [Parte 1]

Escrevi esse ensaio originalmente pro iCult Generation, mas no decorrer da escrita acabei saindo da minha proposta original - uma análise das origens filosóficas da Política - para torna-lo um pouco mais abrangente e conectado com o presente momento político. Por esse motivo, resolvi postá-lo aqui no NSN, onde não tenho muitas preocupações com relação a público e desvio do tema.

Esse artigo/ensaio será dividido em três partes e sairá em três dias seguidos devido ao seu tamanho - o maior texto que já escrevi na vida, com belos 110 mil caracteres. A primeira mostrará as bases teóricas para o atual modo de se fazer política e para a constituição dos Estados. A segunda falará mais especificamente sobre como essa teoria é usada de modo nefasto pra justificar uma série de atos criminosos praticados pelos Estados. A terceira apontará exemplos de sociedades e organizações que funcionam sem hierarquias ou Estados.

Aproveitem a viagem!

 

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"Primeiro, eles vieram atrás dos comunistas. E eu não protestei, porque não era comunista. Depois, eles vieram pelos socialistas e eu não disse nada, porque não era socialista. Mais tarde, eles vieram atrás dos líderes sindicais. E eu me calei, porque não era líder sindical. Então, foi a vez dos judeus. E eu permaneci em silêncio porque não era judeu. Finalmente, vieram me buscar. E já não havia ninguém para protestar."


Martin Niemoller, pastor protestante alemão, sobre os nazistas durante a Segunda Guerra Mundial.

No dia 13 de setembro de 1999, num período pré-eleições presidenciais, uma bomba explode num complexo de edifícios na avenida Kachirski, em Moscou, matando cerca de 124 pessoas. A motivação por trás do ato parecia obviamente coisa dos chechenos, visto esses possuírem um histórico aguerrido de combate às forças russas logo após o fim do comunismo. Três anos antes, o Exército Russo havia sido surrado pelos separatistas chechenos numa guerra que durou dois anos - e terminou com a independência de fato da república. Entretanto, investigações posteriores revelaram provas bastante fortes que os atentados foram arquitetados por integrantes do FSB, a polícia secreta herdeira de parte do poderio do famoso KGB. O plano era bastante simples: colocar chefes do serviço secreto no governo russo, ainda bastante fraco com o desmantelamento da União Soviética e dos anos de administração de Boris Yeltsin. A estratégia deu certo, e através de contínuas influências políticas e chantagens, todas as instâncias do poder russo aprovaram a guerra, mesmo com os chechenos deixando claro que estavam dispostos ao diálogo e que os atentados não haviam partido de lá. O cerco do FSB fora tão poderoso, que envolveu ameaças a diversos jornais russos, que noticiaram em uníssono as provas governamentais de que haviam sido guerrilheiros chechenos que tinham explodido os prédios. Esses atentados foram somente o estopim, já que uma série de outros atentados ocorreu na república vizinha da Chechênia: o Daguestão, que também ficaram sob forte suspeita de terem sido arquitetados pelo serviço secreto.

O quadro de medo e paranóia entre a população estava completo e boa parte dela apóiava as atitudes enérgicas do novo Homem Forte da Rússia: o primeiro-ministro recém-nomeado Vladimir Putin, que em muitos aspectos mostrava uma clara similaridade com os governantes soviéticos. Com o pano de fundo perfeito preparado, Putin ordenou um pesado bombardeio a república, que de cara matou um enorme número de civis, incluindo crianças. Em poucas semanas, a capital da Chechênia, Grozny, sumiu do mapa, sendo reduzida a uma pilha de escombros. Em menos de um ano toda a república já estava sob controle russo e Putin venceu facilmente as eleições presidenciais daquele ano, dando início a mais de uma década de poder ininterrupto. No campo internacional, a guerra trouxe consequências bastante tensas: a Arábia Saudita apoiou os separatistas e inclusive facilitou o transporte de mujahedeens para lá, e logo depois recebeu ameaças de uma guerra com a Rússia, caso algum ataque terrorista ocorresse no país; a Geórgia também apoiou os separatistas, e meses depois viu tropas russas entrarem em seu território (em 2008, um novo ataque russo ao país destrói grande parte da infra-estrutura georgiana).

Dia 7 de dezembro 1975, três dias depois de se tornar independente da colonização portuguesa, Timor Leste é invadida por tropas indonésias e passa ser considerada a 27º província do país. O massacre que se seguiu a essa invasão é um dos capítulos mais sangrentos da história das últimas décadas: os indonésios explodem vilas inteiras, jogam napalm em escolas, alegando serem esconderijos de guerrilheiros - exterminando um terço da população timorense no processo, pelo menos umas 200 mil pessoas. Grande parte da vegetação do Timor foi destruída, e em 1991, uma manifestação em prol de um estudante morto pelas forças indonésias foi fortemente reprimida, terminando num banho de sangue que deixou mais de 200 mortos - e as tropas da Indonésia, não satisfeitas, mataram mais dezenas de manifestantes dias depois, no que ficou conhecido como o Massacre de Santa Cruz. As chacinas e mortes prosseguiram até 1999, quando se iniciou uma tímida pressão internacional.

 

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Antes, em 1998, uma série de crises financeiras e pressões populares violentas terminou por causar o fim do regime ditatorial do general Suharto, que governou a Indonésia por mais de 30 anos; o que possibilitou que, um ano depois, um referendo popular decidisse pela independência timorense. Mas a liberdade não veio sem mais mortes: milícias treinadas e protegidas pelo exército indonésio promoveram um banho de sangue nas ruas de Timor Leste antes que o resultado do referendo fosse divulgado. Dezenas de milhares de pessoas foram sequestradas e torturados em locais até hoje desconhecidos e jornalistas internacionais foram expulsos do país sob ameaça de morte. Somente em setembro de 1999, com a chegada de soldados australianos de uma missão da ONU é que Timor Leste conseguiu a independência, após ter toda a sua infra-estrutura destruída e grande parte da população assassinada.

Noite de 16 de setembro de 1982. Parecia tudo normal nos campos de refugiados palestinos de Sabra e Chatila, no Líbano, quando tropas com fardas sem insígnias entraram no lugar e iniciaram um lento e decidido genocídio. A matança durou cerca de 36 horas e oficialmente matou 3 mil pessoas, entre homens, jovens, mulheres, crianças e velhos - os números divergem porque as milícias queimaram inúmeros corpos e os jogaram em valas. A entrada dos milicianos na região foi tão inesperada e repentina que, segundo reportagem da VEJA, houve mulheres metralhadas com a panela na mão, enquanto cozinhavam, homens abatidos quando tentavam enfiar roupas em malas, sofregamente, e velhos mortos embaixo de mesas e cadeiras, como animais. Em várias casas que pareciam ter sido poupadas pelos matadores, as pilhas de corpos foram encontradas no último cômodo, refúgio inútil de famílias inteiras abraçadas de medo. Ao término da chacina, havia um catálogo completo de selvageria: pescoços cortados, ventres rasgados, costas perfuradas de balas. As vítimas, entre homens, mulheres, crianças e velhos palestinos, estavam desarmadas. Até a presente data, não culparam oficialmente o responsável pela chacina: uma tropa mista do exército da Falange Cristã do presidente que havia sido recentemente assassinado, Bachir Gemayel; tropas rebeldes do major Saad Haddad, e alguns outros grupos paramilitares apoiados pelo governo de Israel (o mesmo caso dos dois anteriores), que armava toda uma horda de malucos para desestabilizar o regime libanês - o que se mostraria útil no combate aos guerrilheiros do Hezbollah, que seria fundado naquele ano e décadas depois venceria uma longa batalha contra a ocupação de Israel no Líbano.

Os israelenses, mesmo tendo um histórico de massacres vergonhosos, gritaram não ter nada a ver com o ocorrido. Ariel Sharon, à época Ministro da Defesa, disse a imprensa: "As mãos de nossos soldados estão limpas, e eles mantêm a pureza de suas armas." (não vou comentar a ridiculamente paradoxal relação entre pureza e armas). Mas o envolvimento das Forças Armadas de Israel era bastante conhecido; diariamente eles lançavam bombas sobre os campos para obrigarem as pessoas a permanecerem em suas casas, além de imprimirem o terror expresso na mente deles - só nos oito primeiros dias de agosto daquele ano, o próprio governo israelense calculou 267 bombardeios aos dois campos. E foi num intervalo dessas chuvas de bombas que as tropas invasores entraram em Sabra e Chatila, diretamente autorizadas pelo Ministério da Defesa do Estado de Israel. Para reforçar essa tese do envolvimento de políticos israelenses, aviões do país sobrevoavam os campos no momento dos assassinatos, para iluminar os crimes dos milicianos libaneses com seus potentes faróis. Semanas antes, o Mossad, o serviço secreto israelense, alertou o governo que os falangistas com toda a certeza massacrariam os palestinos caso fossem autorizados a entrar nos campos, informação que foi propositalmente ignorada pela cúpula que mandava em Israel.

 

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Os que não morreram pelas rajadas de armas automáticas, estupros, decapitações, enforcamentos, estripamentos, apedrejamentos, atropelamentos, entre outros métodos bárbaros de assassinato, pouco encontraram guarita em hospitais e se esconderam entre cadáveres para tentar sobreviver. O jornal Jerusalem Post escreveu um editorial condenando o massacre: "Rosh Hashanah 5743 (o Ano-Novo que se comemorava no sábado, dia 18) tomou-se o Rosh Hashanah da vergonha... É a vergonha de todo cidadão individual, pois todos fomos feitos cúmplices do horrível massacre de Beirute". Em fevereiro de 1983, Ariel Sharon, considerado o responsável israelense pelo massacre, é obrigado a se demitir; e Elie Hobeika, comandante-chefe dos serviços secretos das Forças Libanesas (que mandavam na Falange Cristã), é considerado o responsável direto do lado libanês - ele não sofreu qualquer punição, mas foi assassinado pela explosão de um carro bomba em Beirute, que correntes do governo libanês disseram que partiu de Israel, que na época tinha como primeiro-ministro... Ariel Sharon.

 

No dia 8 de maio de 1945, o mundo comemorava a recente vitória sobre os nazistas, enquanto os argelinos organizavam gigantescas manifestações para pressionar o imperialista e colonizador governo francês a concederem a independência a eles. Na mesma época, soldados argelinos retornavam das frentes européias e africanas, onde lutaram ao lado dos franceses. Aviões e soldados franceses reforçaram as tropas coloniais estacionados na região. Em poucos dias, cerca de 45 mil argelinos foram cruelmente assassinados em bombardeios e fuzilamentos sumários, no episódio conhecido como Massacre Setif e Guelma, pois nesses dois territórios se concentravam a resistência aos franceses. Somente durante o dia 8, nas manifestações, os franceses mataram cerca de 6 mil argelinos. A partir dessa crueldade, foi fundada Frente de Libertação Nacional (FLN), que declarou guerra aos franceses. Na guerra que durou até 1962, os franceses promoveram assassinatos até mesmo em seu próprio território. Um exemplo é o Massacre de Paris, ocorrido em 17 de outubro de 1961, quando o chefe da polícia de Paris , Maurice Papon, deu ordens para que uma pacífica manifestação pró-FLN, com 30 mil pessoas, fosse violentamente reprimida. O governo francês, 37 anos depois, admitiu 40 mortes, embora estimativas apontem para 200 mortes.

Em 4 de novembro de 2008, dia das eleições presidenciais americanas, a cúpula de poder israelense decide romper a trégua com o Hamas por um motivo que somente eles conhecem. Há seis meses, o grupo que administra a Faixa de Gaza não realizava qualquer tipo de ataque contra as forças armadas israelenses. Provavelmente por essa paz anormal, os israelenses decidiram que era hora de mergulhar Gaza em sangue mais uma vez e recolocam o território sob um cerco semelhante ao empreendido por nazistas nos infames guetos que existiram por vários países da Europa - e ironicamente eram cheios de judeus. A desculpa para a volta do bloqueio foi "evitar que o Hamas faça túneis de contrabando na região" - que eles não tinham qualquer prova de existência. Barak Ravid, um importante jornalista israelense que escreve no Haaretz, diria depois que todos os passos para a invasão total da Faixa de Gaza para um genocídio já eram planejados. "Fontes do 'establishment' da defesa disseram que o ministro da Defesa Ehud Barak deu instruções às forças de defesa israelenses para se prepararem para a operação, há mais de seis meses, na altura em que Israel estava a começar a negociar um acordo de cessar fogo com o Hamas", escreveu ele dia 31 de dezembro, quatro dias depois do início da operação.

O Hamas, em resposta, atirou mísseis caseiros sobre Israel, mísseis que eram tão imprecisos, que de 2001 até fevereiro de 2008, haviam matado 14 israelenses - e dessa vez feriram duas. Israel atirou mísseis de aviões F-16 sobre casas palestinas, como contra-resposta. O Hamas oferece nova trégua ao governo judeu: os ataques cessam, em troca do fim do bloqueio e dos ataques seletivos de Israel. A proposta nem chegou a ser apreciada por eles. E foi no dia 27 de dezembro que veio a verdadeira ofensiva israelense - batizada de Operação Chumbo Fundido -, a mais sangrenta operação militar do país desde a Guerra dos Seis Dias, mais de 40 anos antes: tanques, aviões, helicópteros e toda uma corja de terroristas fardados foram mobilizados para a operação, que tinha como objetivo oficial impedir que novos ataques com foguetes do Hamas partissem da Faixa de Gaza. De 27 de dezembro a 3 de janeiro, choveram bombas sobre a Faixa de Gaza, sobre os mais diversos alvos; escolas, casas, plantações, hospitais, ambulâncias, parques infantis... nada escapou a precisão assassina dos soldados israelenses. Em alguns momentos, em intervalos de quatro minutos, Israel jogava cerca de 100 mísseis sobre Gaza. Dentro dos bairros residenciais, colonos e franco-atiradores posicionados em janelas e tetos de casas matavam crianças, velhos, membros do Crescente Vermelho (o órgão da Cruz Vermelha que atua nos países islâmicos), e até mesmo animais, espalhando um terror psicológico sem precedentes. Na costa, barcos de ajuda humanitária foram sumariamente bombardeados, mostrando mais uma vez a face terrorista do Estado de Israel. No dia 3 de janeiro, os soldados e tanques finalmente irrompem pra dentro do território, complementando e derrubando tudo que os aviões haviam deixado de pé, como mesquitas e universidades. Ambulâncias e médicos recolhendo corpos de palestinos mortos foram sumariamente alvejadas por soldados.

 

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O massacre durou até 21 de janeiro, posse de Barack Obama, que nada fez contra seus aliados. Ao todo, Israel empregou 620 mil soldados na Operação e exterminou 1.314 pessoas, pelo menos metade delas sem qualquer relação com o Hamas, sendo a vasta maioria mulheres e crianças. Outras cinco mil ficaram feridas ou mutiladas, e 53 instalações de assistência da ONU foram alvos de tiros, incluindo escolas e hospitais. Do ponto de vista militar, a operação fui um fracasso completo, pois nem arranhou a infra-estrutura de armas do Hamas, nem destruiu os túneis e nem acabou com os foguetes - o que indica que a operação tenha sido feita exclusivamente para derramar um banho de sangue na Faixa de Gaza. Do lado israelense, morreram 13 pessoas, contando três deles por fogo amigo (embora os palestinos afirmem que tenham matado 48 soldados), 100 vezes menos.

Uma comissão do Conselho de Direitos Humanos da ONU liderada pelo juiz sul-africano Richard Goldstone, chega a Gaza quatro meses depois da Operação Chumbo Fundido para iniciar investigações sobre possíveis violações de direitos humanos, crimes de guerra e contra a humanidade. Em 15 de setembro de 2009, a comissão apresentou seu relatório, concluindo que Israel "cometeu crimes de guerra e, possivelmente, contra a humanidade", e que "embora o governo israelense tenha procurado caracterizar suas operações essencialmente como uma resposta aos ataques de foguetes, no exercício do seu direito de auto-defesa, a comissão considera que o plano visava, pelo menos em parte, um alvo diferente: a população de Gaza como um todo", como escreveu o New York Times, no dia 19 de setembro de 2009. A devastação empreendida por Israel não poderia ser pior, como é possível constatar pela lista de alvos destruídos pelo terrorismo oficial do país: 47 mil casas, todos os postos de polícia, toda a estrutura portuária, dois comboios humanitários da ONU, a sede da ONU em Gaza, o Complexo Jornalístico Internacional, todas as empresas de saneamento, água e energia elétrica, 2/3 dos ministérios palestinos - incluindo o Ministério da Educação, entre inúmeros outros edifícios.

Acusações mais graves viriam depois. O jornal britânico The Times apresentou provas que as Forças Armadas Israelenses usaram armas de fósforo branco - de fabricação americana - na Operação, armas que causam queimaduras químicas profundas, e são proibidas pela III da Convenção sobre Armas Convencionais, de 1980, de serem usadas contra civis, ou contra militares estacionados em regiões com civis. Em março de 2009, soldados que participaram da operação, declararam ao jornal Haaretz que mataram palestinos e destruíram casas “porque quiseram e podiam”, e não por verem neles qualquer ameaça militar. Duas semanas depois, Danny Zamir, diretor de um instituto preparatório militar isralense, confirma a autenticidade dos relatos ao jornal ao mesmo Haaretz e diz que a prática é comum entre as tropas do país. Um ano depois do término da operação, o Exército Israelense formalmente admite o uso de bombas de fósforo contra a população civil, inclusive sobre a sede da Agência das Nações Unidas de Assistência aos Refugiados da Palestina no Próximo Oriente, onde centenas de palestinos se abrigaram.

 

Todos esses crimes sangrentos, vergonhosos e desumanos - que são apenas exemplos de inúmeros que ocorrem a todo o momento, em diversos pontos do Espaço-Tempo - têm alguns grandes fatores em comum: jamais viram ser punidos os verdadeiros responsáveis por eles, se valendo de bodes expiatórios de baixo escalão para se resolverem; e foram, sem exceção, praticados por Estados constituídos e reconhecidos, sempre contra povos que não tinham Estados soberanos. E como dá pra perceber, todos esses fatores estão intimamente ligados.

A soberania e liberdade de um Estado é algo completamente relativo, pois se vale de aprovações de grupos formados pelos Estados mais poderosos da Terra. Se o Irã, se valendo de suas leis - leis questionáveis, só pra deixar claro -, apedreja uma mulher adúltera, o país é largamente condenado internacionalmente e ameaçado de intervenções militares; mas se os EUA passam por cima das próprias leis, e torturam prisioneiros em Abu Ghraib, dando continuidade a sua largamente conhecida política de intimidação, só sofrem umas parcas acusações internacionais, que no fim não servem de nada. A dubiedade é ainda mais profunda quando entram na linha de discussão questões geopolíticas. A Aliança do Norte (ou Frente Islâmica Unida para a Salvação do Afeganistão, seu nome oficial) é reconhecido pela maioria dos países ocidentais como um grupo legítimo de resistência ao regime Taliban; enquanto o Fatah e o Hamas, que lutam contra a ocupação de Israel na Palestina e operam em linhas semelhantes, são considerados grupos terroristas por boa parte dos mesmos países. O aiatolá Ali Khamenei, sucessor de Khomeini na liderança do Irã, é taxado de ditador pelos EUA, enquanto Pervez Musharraf, ex-ditador golpista do Paquistão, que comprovadamente apoiou e financiou grupos terroristas na Caxemira, era um dos maiores aliados dos EUA na luta contra o terrorismo.

 

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Alguém que estuda esse tipo de discrepância provavelmente parte para a eterna solução barata de caçar Bodes Expiatórios, apontando nomes de criminosos conhecidos, como George Bush (pai e filho), Ariel Sharon, o general Suharto, Pol Pot, Stalin, Hitler... ou qualquer outro de um vasto arsenal de governantes e ditadores megalomaníacos e viciados em poder. Logicamente que esses homens foram responsáveis por mortes e degradações humanas das mais inacreditáveis, mas não existiriam - ou suas ações seriam bem menos abrangentes e nefastas - sem uma superestrutura de poder legítima, constituída e sólida por trás deles. Atacar essa ferramenta é o que provavelmente deveria ser o objetivo dos analistas, filósofos, militantes, párias... ou qualquer sorte de dissidente social que se põe a questionar o modo de funcionamento dos escalões de poder.

 

O Estado - a tal ferramenta de poder - teve uma criação enuviada, longa e, de certa forma, obscura. Aristóteles dizia que o homem é naturalmente político (ou: O homem é um animal político, como afirma sua conhecida frase), e sem qualquer tipo de pressão ou acordo, criou estruturas para auto-governar-se. Para ele, uma sociedade que era formada em cidades e conglomerados urbanos necessitava de formar complexas e intrincadas formas de auto-gerir-se para melhorar a própria existência. Seguindo uma lógica darwinista moderna misturada com a visão clássica aristotélica, um resumo disso seria: os homens têm uma espécie de predisposição de seguir líderes, não tendo possibilidades sociais de criar vivências igualitárias, terminando por basearem-se em hierarquias.

O pensamento teórico político grego pode ser considerado o primeiro documentado do mundo Ocidental, e todos os posteriores incorporaram diversos elementos do que os filósofos helênicos escreveram. Tal modo de ver o mundo provavelmente derivou dos conceitos de conhecimento do pensamento dos gregos, essencialmente místicos e metafísicos, centralizando sua visão de mundo num pesado Olimpo divino. Platão levou o pensamento político grego um pouco mais adiante. Sua citação da Carta Sétima é um bom resumo do que ele tinha na cabeça com relação ao assunto: "Os males não cessarão para os humanos antes que a raça dos puros e autênticos filósofos chegue ao poder, ou antes, que os chefes das cidades, por uma divina graça, ponham-se a filosofar verdadeiramente." Na visão de Platão, os Filósofos, habilmente dotados de conhecimentos morais, eram os mais (por mais, entenda únicos) indicados para governarem um povo. Ou os políticos já no poder deveriam adquirir conhecimentos filosóficos. Não tinha exceção - como é o caso de toda a Filosofia Clássica Grega, que é sempre taxativa e absoluta.

Se olharmos as Teorias do Conhecimento desenvolvidas por Platão - ou por Sócrates, como apontam alguns detratores de Platão, já que Sócrates não escreveu nada, sendo quase toda a obra dele transcrita por seu principal pupilo, Platão - saberemos que ele entendia que a principal missão da Filosofia e da produção de Conhecimento era a busca por uma Verdade Universal e Incontestável, e isso era vastamente refletido nos escritos políticos dele. Platão usou uma alegoria mitológica grega para descrever a origem da necessidade política na raça humana.

 

No desenrolar da guerra de Cronos - Titã que é a divindade suprema da segunda geração de deuses gregos - contra Zeus, o mundo é coberto de uma desordem até então inexistente. A balbúrdia resultante desse momento transitório quebrou a harmonia que existia entre a raça humana, acentuou suas divisões e fechou-a em grupos com pesados regimes políticos, que nasceram como uma forma de defesa para a selvageria das relações humanas no início dos tempos de Zeus.

Dessa forma, os políticos para ele seriam enviados diretos de (Z)Deus, absolutos, o que excluía qualquer visão democrática com relação a política. O pensamento dele com relação à própria Filosofia é bastante análogo, algo mais ou menos na linha das atitudes do próprio Zeus, que puniu o Titã Prometeu por ele ter levado o conhecimento do Fogo a Humanidade. O Conhecimento era algo exclusivo para poucos Iluminados, não estando o povo preparado para ele.

 

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Assim pensava Platão. Os Filósofos modernos seguidores da Linha Clássica que o defendem, podem alegar que se trata de uma derivação da forma de pensamento oriundo da cultura estratificada da Grécia naqueles tempos, e isso explica o pesado absolutismo das teorias política platônicas, que propunham a divisão social em camadas privilegiadas e desprivilegiadas. Essa forma de encarar os fatos pode demonstrar que a visão dele era unânime, fruto do meio, que não havia gregos contemporâneos a Platão que pensassem diferente. Mas isso é uma inverdade. Nessa época, existiam os Sofistas, que viam a política como um negócio essencialmente terreno, humano, não incutiam qualquer idéia metafísica ou divina na política. Para eles, a Arte Política não era inerente ao método de exercer a política, mas sim ao modo de conseguir aliados, na retórica, na chegada ao poder. Para os Sofistas, a política era essencialmente popular, e deveria permitir o acesso de todas as camadas da população ao poder. E tais pensamentos se estendiam as teorias de conhecimento deles, baseadas em complexos jogos de palavras e numa mistura de empirismo e sabedoria terrena. Platão - e seus discípulos - não ficou feliz com as teorias subversivas dos Sofistas, e passou a persegui-los, se valendo de seu prestígio para destruir grande parte das obras deles, que eram ricos por passarem seus conhecimentos a inúmeras camadas da população grega em troca de dinheiro. Tal fato claramente parece mostrar Platão como alguém que imaginava a política de forma absolutista e sem qualquer tipo de oposição.

Claro que é ilógico analisar a concepção política platônica somente por esse ângulo, baseado em nossa forma de pensamento moderno. Se olharmos o contexto em que ela está inserida, perceberemos que era um ambiente de crescente corrupção e degradação moral - principalmente em Atenas, e a idéia principal dele era dar vazão a formas mais rígidas de estruturas governistas, com menor possibilidade da chegada de líderes amorais e injustos a postos de comando. Sua principal guinada em direção ao absolutismo político se deu após a condenação à morte de seu mestre Sócrates, o que o levou a questionar que tipo de governo poderia assassinar o homem mais puro que ele já conhecera. Daí surgiu seu primeiro conceito mais amadurecido na política, a de que o homem, para ser cidadão, deve estar inserido na vida da Pólis (as grandes cidades gregas, erroneamente chamadas de Cidades-Estado).

Após uma intensa observação das ações dos gregos no ambiente político, Platão tira uma conclusão fantástica (para ele, claro): os Filósofos eram a classe liberta pelo conhecimento, e por isso deveriam ocupar os cargos políticos, ter o poder... e isso não era discutível. Platão cria piamente que a Filosofia limpava o homem de qualquer injustiça e corrupção, e por isso o capacitava para os delicados caminhos do poder - os Sofistas eram bem mais avançados nesse aspecto, e diziam que o Conhecimento poderia servir à vontade do homem, seja para o bem ou para o mal. Mesmo parecendo essencialmente utópica, a concepção de Platão da política e do embrião estatal estava profundamente calcada numa forma mais mística e abstrata de encarar nossa passagem pela vida, o que contrasta profundamente com o Modernismo Iluminista e excessivamente racional, a oposição moderna mais clara às idéias dele.

Então, é natural que conceitos como o Bem Espiritual estejam presentes na forma dele de encarar e teorizar sobre a política. Platão, de forma inovadora e intensa, pregou a separação dicotômica do corpo humano entre os campos físicos e espiritual. O Mundo das Idéias - espiritual, perfeito - era inalcançável devido a limitações materialistas do nosso corpo físico, que deveria ser suprimido, vencido. Seguindo essa idéia, ele afirmou que existiam duas políticas: a Falsa, que se dedicava a buscar prazeres corporais, carnais e mundanos; e a Verdadeira, que amplificava o Espírito, as Idéias e a Filosofia. O Conhecimento era o caminho para levar o povo a se dedicar a purificar a própria alma, e o principal dever dos governantes políticos era justamente espalhar o conhecimento quando o povo estivesse pronto pra ele. Dessa linha, se deriva uma série de pensamentos platônicos com relação a Justiça, Guerra e Paz.

Teoricamente, o que Platão concebe mais se assemelha a uma formação estatal utópica, pois coloca o Estado e seus Governantes no papel de intermediários na construção do caráter filosófico de seus comandados, mas no processo dá poder absoluto a essas figuras, não prevendo que homens mal-intencionados pudessem se valer disso. Ao descrever o mundo terreno como essencialmente miserável, inútil e prisional, Platão dá brecha para um sério levante político no sentido do absolutismo, como ficou bastante patente no trato dele próprio para com sua oposição filosófica, que dizia que todo o conhecimento deveria ser provado com argumentos ou testes empíricos - sim, os Sofistas foram os originadores dos primeiros conceitos científicos concretos.

 

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Mas, como os fortes geralmente ganham, foi a teoria política platônica que passou a frente. Tanto, que boa parte das teorias ocidentais posteriores foram calcadas fortemente no absolutismo e no expansionismo. E isso originou a maioria das mazelas da maior parte das sociedades do mundo. O italiano Nicolau Maquiavel, outro famoso pensador político, ficou famoso pela frase mal interpretada de "Os fins justificam os meios" (que segundo Newton Bignotto, filósofo da UFMG, nem existe na obra dele) que basicamente parece indicar que os caminhos do poder justificam qualquer atitude inglória. Maquiavel, pensador absolutista, escreveu seu pretensioso e mais conhecido compêndio de pensamento político, O Príncipe (1513), como um manual de conselhos a governantes. Mesmo inserido numa realidade degradada e num momento carregado de ostracismo após ficar quase um mês preso, seu O Príncipe se tornou um manual obrigatório, e é considerado como a origem da ciência política moderna.

Muito disso se deve ao fato de que Maquiavel não era utopista, descreveu o Estado e os jogos políticos de forma nua, sem caracterizações floreadas, se atendo a realidade e dando conselhos para governantes controlarem sua população e alcançarem um governo estável e duradouro. Maquiavel também rompeu com o pensamento medieval, que se apoiava em conceitos religiosos, e inseriu contextos exclusivamente políticos em suas teorias, se mantendo no Reino Terreno do pensamento. Ele também estudou profundamente os modos de governos da Roma Antiga e aplicou seus conhecimentos em teorias empíricas para entender as formas de poder, e as inseriu numa Ética extra-religião, onde dizia que as ações de governo deveriam ser para manter o funcionamento do Estado e não para se encaixar em regras espirituais. Maquiavel, então, significou uma quebra definitiva da base olímpica da política, mesmo que absorvendo diversos conceitos relativos a Poder propostos por Platão - principalmente com relação ao absolutismo. E como ser mundano tem seu preço, seu conterrâneo Papa Paulo IV colocou seu livro direto no Index Librorum Prohibitorum, em 1559.

Os principais conceitos teórico-práticos propostos por Maquiavel em O Príncipe podem ser absorvidas com certa facilidade, embora devam ser analisados em conjunto com as outras duas obras mais importantes dele: Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio e A Arte da Guerra. Sintetizando a teia de idéias de O Príncipe, é possível dizer que ele se inicia discorrendo sobre as diferentes formas de poder estatal e seus principais modos de governo - monarquia e república - e depois entra num campo de atitudes pessoais que o governante deve adotar para ser admirado por sua corte, se valendo de relativa bondade financeira para conquista seus súditos e o próprio povo.

 

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Lá pela metade do livro, ele insere o conceito de temor melhor que amor, demonstrando de forma prática como amizades palacianas somem sem deixar vestígios quando as coisas apertam. Depois lista uma série de virtudes essencialmente "boas" que o governante deve possuir, como interesse, religiosidade e piedade, se preocupando para manter o povo feliz. O Príncipe também foi inovador ao teorizar - pela primeira vez, de acordo com historiadores - que Estados deveriam possuir exércitos regulares, doutrinados e obedientes, em oposição aos grupos de mercenários que eram formados em guerras e situações de emergência. Tal conceito foi fundamental para o estabelecimento moderno definitivo do Estado, baseado em forças punitivas, que estenderia sei poder baseado na força.

As interpretações da obra de Maquiavel, especialmente O Príncipe, são bem variadas e extensas. Os católicos naturalmente repudiaram seu pensamento sem relação com moralismos religiosos, enquanto outros tentaram unir sua obra ao pensamento cristão, errando da mesma maneira, já que se utilizavam de maneirismos muito parecidos para descontextualizar os escritos de Maquiavel. Outros analisavam a obra como essencialmente diferente ao que ela é - embora a possibilidade seja válida: ao invés de ser um guia de conselhos para reis e tiranos, o livro seria uma forma de mostrar ao povo o que rolava nos corredores palacianos. O principal argumento para isso é o fato de Maquiavel ser um apoiador do modelo republicano de governo, de certa forma condenando o absolutismo monárquico em obras posteriores. Mas a principal contribuição de Maquiavel foi a inserção uma cara científica no modo de se pensar política, contrastando com a utopia reinante em tempos passados. Isso se tornaria regra entre os teóricos políticos daí pra frente.

 

 

Após Maquiavel, que está para Ciências Políticas da mesma forma que Copérnico está para a Astronomia, vários dos outros teóricos, olhando de certa forma, limitaram-se a acrescentar elementos aos escritos dele. Thomas Hobbes acrescentou o chamado Estado Natural, em que teorizou sobre o homem pré-sociedade e civilização, iniciando uma inédita contraposição à idéia aristotélica com relação a necessidade humana de organizar-se politicamente de forma automática. Mesmo sem evidências científicas, Hobbes achou lógico que em algum momento da história os homens não tivessem métodos de criarem estruturas sociais. Mas o erro de Hobbes passa por um pré-julgamento sem embasamento da psique humana como essencialmente ruim, maléfica. "O homem é o lobo do homem", disse ele, o que parece ser verdade sob nossa ótica moderna, mas ele não atentou para o fato de que olhamos o comportamento humano somente sob o prisma da existência da época dele, sendo necessários dados para comprovar que o humano repete esses comportamentos predatórios em ambientes sociais menos coercivos.

Dentro da lógica de Hobbes, a Sociedade não foi criada visando o bem comum, mas apenas para erguer barreiras que impedissem o homem de se auto-destruir. O Homem é um ser de guerra, que não vive em paz, e por isso se faz necessário a criação de uma rígida estrutura social para impedir que essa extinção ocorra. Essa era a teoria de Hobbes. John Locke imaginava algo semelhante, e complementou que o Estado torna o Estado Natural humano reprimido, mas ainda presente na sociedade, condicionando uma necessária e contínua coerção dele por parte de instrumentos repressivos do próprio Estado. Em comum para eles fica a idéia do Estado ser construído sob a base do medo e violência que os humanos sentem dos seus semelhantes. Max Weber terminou por fazer a definição aceita até os dias de hoje sobre a questão: o Estado é a única organização que pode exercer legitimamente a violência numa nação, desde que isso seja aprovado por seu povo em algum momento da história dele. Tal poder do Estado se tornou inerente a ele com o passar dos anos, o que resultou no argumento dos teóricos de que o Estado deixa de ser Estado se perder o poder do monopólio da justiça e da violência para exerce-la. O problema dos que abraçam essa definição é natural: se todos reconhecerem o Estado como único detentor de qualquer meio violento, todas as revoluções armadas - inclusive a que pariu a Idade Contemporânea - soam ilegítimas. Esse tipo de pensamento, que pode ser encarado como uma desvirtuação moderna do pensamento platônico, é o que deu vazão as atrocidades descritas no início do artigo, pois legitima massacres perpetuados pelo Estado e minimiza qualquer manifestação de independência popular.

 

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Obviamente que o descrito acima é apenas uma porção fragmentada da vasta obra desses pensadores. John Locke, por exemplo, defendia uma espécie de democracia, ao discorrer sobre a tolerância como fator importante do Estado. Mas essa tolerância não era total, e estava atrelada a um pensamento capitalista e um conceito hierárquico e étnico abertamente absolutista. Locke dizia que os índios e outros nativos não eram merecedores dessa tolerância, por não estarem organizados em sociedade (ao menos não no modelo europeu). Os católicos estariam na mesma situação por seu histórico de roubos - Locke era anglicano. Obviamente que existia um contexto para tais opiniões - o que não as justifica - mas é importante ressaltar que não eram unânimes na época. Michel de Montaigne tinha um pensamento bastante diferente com relação aos indígenas, por exemplo. Montaigne conceituou uma humanidade pluralista, complexa, e com uma visão um pouco mais ampla do que o pensamento "Sociedade vs Selvagens".

Mas as próprias idéias de Montaigne podem ser consideradas tímidas se comparadas aos escritos de um dos precursores do verdadeiro Humanismo: o suíço Jean-Jacques Rousseau. O principal pensamento de Rousseau era "O homem nasce livre, e em toda parte é posto a ferros . Quem se julga o senhor dos outros não deixa de ser tão escravo quanto eles". A essa altura, o pensamento de um Estado forte e carregado de violência já estava tão arraigado - inclusive entre os Iluministas, que entraram pra história como supremos defensores da liberdade e da racionalidade - que o próprio Rousseau foi alvo de perseguições por parte de uma elite social que estava substituindo cada vez os que os perseguiram a pouco tempo. Outro ponto que tornou Rousseau perseguido foi sua crítica a propriedade privada, bastante clara em seu conceito de Estado da Natureza Humano. "O homem é bom por natureza. É a sociedade que o corrompe."

Rousseau foi além da política e, assim como Locke, escreveu sobre a Natureza Humana. Ele entendia o homem como um ser com necessidades que foram crescendo a partir do momento em que a sociedade foi evoluindo. O Homem Natural - de uma forma generalista - não poderia ser brutal ou desejar o mal um do outro, já que seu conhecimento sobre violência coletiva era limitado. Isso era reforçado pela suposição dele de que os homens tinham um pequeno círculo de conhecidos, geralmente não passando da própria família. A natureza seria seu ambiente natural, e a simbiose com ele somada a necessidade de extração alimentícia diminuiria até próximas a zero as chances do homem ser verdadeiramente "o lobo do outro homem". Sua relação com a natureza exclui do homem a maioria das relações com outros homens - principalmente as predatórias, pois o ambiente selvagem contém todos os ingredientes necessários para a sobrevivência.

 

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O instrumento humano para sobreviver em meio ao ambiente selvagem seria o Instinto, uma série de conteúdos e funções cerebrais inerentes ao homem desde seu nascimento. A Razão para ele seria uma espécie de capa lançada sobre o Instinto humano, habilitando-o a viver coletivamente, numa sociedade constituída. Linguagem, ciência, construções... tudo seria fruto da sociedade, ajudando na adaptação humana a uma série de estruturas sociais. E essa adaptação - forçada, em vários casos, como na ação dos maiores impérios da época - ocasionaria uma mudança profunda na forma de se comportar da humanidade, que fora do seu habitat se tornaria um predador, tanto da natureza, quanto da própria espécie.

Além de filosofar sobre a Sociedade, Rousseau, com certeza o patrono da maioria dos movimentos sociais da Idade Contemporânea, escreveu obras sobre Política e a Liberdade. A Liberdade natural do ser humano seria aquela pura, da natureza, para satisfazer os instintos dele. Como vive em pequenos grupos de interesses comuns, essa Liberdade pode ser exercida de forma praticamente plena, pois rejeita relações sociais em comunidades. A chave para uma existência humana plena seria viver em estado quase isolado, longe de dominações de grupos organizados. Esse estado de retiro só seria  quebrado para fins de reprodução, e não estaria esperando para ser mudado, como disseram Hobbes e Locke. Rousseau imaginava exatamente o inverso desses dois: a imposição de uma forma de sociedade seria uma quebra desses estado humano perfeito, de integração com a natureza, e geraria as controvérsias entre humanos, suprimindo liberdades individuais e instintos com estruturas sócio-políticas como o Estado. Mas a sociedade para Rousseau não é de toda ruim, seria ambígua. Com a vida coletiva, os homens desenvolveram o amor, o afeto e o sexo feito de forma completa e não puramente reprodutiva, além do pensamento racional. Mas esse seria o preço graças a perda de liberdade e o soterramento de instintos humanos básicos.

Ao final da sua vida, perseguido, Jean-Jacques Rousseau colocou em prática sua teoria e viveu isolado em meio a natureza. Seriam justamente os escritos rousseaunianos que dariam origem a Revolução Francesa, aos direitos humanos e a Idade Contemporânea.

4 Comentaram...

Piccini disse...

Nossa, que texto pesado!
Adorei, esperando pela continuação

Unknown disse...

Eu achei que faltou um pouco de Marx e afins, e o que mudou no modo de pensar na política depois desses caras, mesmo você já tendo escrito milhares de posts com relação a isso hehehehe. Mas não estou reclamando, parabéns pelo post e estou esperando pela 2ª parte amanhã.

Gabriel disse...

Cara, cidade-estado seria só um conceito para facilitar a compreensão do poder grego, não unificado em um governo , principalmente para os pequenos quando veem isso pela primeira vez. Incorreto seria uma pessoa letrada utilizar um conceito como este, mas o emprego do conceito citado é aceitável.

Anônimo disse...

Clap clap clap!

Filipe, eu não conhecia este texto (na época tava tampado de serviço até a testa, então dê um desconto). Lerei a 2ª parte amanhã... vamos por partes também, né? =)

Concordo com o comentário do José Gabriel aí em cima, mas nem passou pela minha cabeça criticar seu emprego do conceito, até porque em um texto grande o maior desafio é justamente "não complicar" para não embolar as idéias.

Ah, e em leituras futuras, esqueça um pouco o Hobbes e foca no Locke... ele é "O CARA" para falar dos instrumentos repressivos do Estado (opinião própria, ok?). Óbvio que eu estou comentando sem ler os dois textos seguintes, então se eu falei alguma besteira, desconsidere.

Grande abraço!
Vinicius Cabral

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